Massacre ManausO Brasil começou 2017 muito mal. Foi manchete internacional pelo absurdo de dois massacres em prisões, ambos detectados bem antes pelos órgãos de segurança dos dois estados. Não se pode dizer então que foi uma crise-surpresa. O macabro protesto ou vingança, que redundou em 99 mortos, foi a crônica da crise anunciada. No mais letal, como aconteceu em Manaus, de certo modo com a conivência da Secretaria de Administração Penitenciária, que autorizou, tanto no dia 24, quando no dia 31, véspera dos festejos, a entrada de um parente por preso, num complexo já superlotado com 1.424 detentos, quando a capacidade é para 454.

A empresa contratada para administrar o complexo, com atribuições, segundo nota por ela divulgada, que não contemplam ações de segurança e revista, muito menos porte de arma, alertou a Secretaria Penitenciária, dias antes, dessa inconsequente decisão. A autorização para entrada de centenas de visitantes comprometeria a segurança do completo penitenciário. Mesmo assim, o secretário confirmou a autorização. Não fosse já pelo absurdo da decisão, seria até de desconfiar que todo o tumulto foi provocado por essa decabida autorização, num momento em que todos os relatórios apontavam para iminentes brigas de facções nos presídios da região Norte.  

Para se ter uma ideia do descalabro e até da hipótese absurda, mas não descartada, de um “pacto” de não agressão do governo local com os “comandantes” do presídio, na madrugada dos crimes havia apenas três policiais patrulhando os muros da prisão; e 12 agentes penitenciários da empresa terceirizada, que foram feitos reféns, libertados depois sem ferimentos. “A FDN - Facção Família do Norte manda e desmanda no Compaj  – Complexo Penitenciário Anísio Jobim”, advertem os agentes do presídio. Para qualquer leigo em segurança, é muito fácil responder à seguinte pergunta: 15 pessoas, por mais bem treinadas e armadas que possam estar (lembrando que os agentes da empresa privada não podem portar armas), são capazes de garantir segurança para um caldeirão com 1.424 condenados pela Justiça? O “Jornal Nacional” da Rede Globo, de sexta-feira, dia 6 de janeiro, mostrou vídeo com imagens de presos transportando armas de um presídio federal, por meio de uma abertura no muro, para o Comparj, que fica ao lado da instituição federal. Pouco tempo depois, começou a série de assassinatos.

Barril de pólvora

Todo o Brasil sabe que as prisões do país são um barril de pólvora, sempre pronto para explodir. Mas como se trata de uma população marginalizada e esquecida, ela não entra no mapa das prioridades governamentais. E isso não é exclusividade do governo Temer. Vem desde os governos militares, passando pelos demais presidentes, de Sarney a Dilma. De segunda-feira, dia 2, para cá, muito se discutiu, ouviu e se escreveu sobre a crise prisional brasileira. No nosso âmbito, convém analisar como um fato desses, de tamanha repercussão e executado com requintes de barbárie, expostos pelas redes sociais como troféu, foi conduzido sob a ótica da gestão de crises.

Inicialmente, foi patética a tentativa do governo, quatro dias após a tragédia de Manaus, vir numa coletiva tentar terceirizar a crise, como se o fato de o presídio de Manaus ser administrado por uma empresa privada lhe desse o álibi para esquivar-se da responsabilidade. A cena do presidente da República olhando de través para o ministro da Justiça, quando tentou explicar com retórica contorcionista de quem era a responsabilidade, deve entrar para os anais dos momentos mais infelizes desse início de ano no âmbito do governo. Nessa mesma entrevista, ficou célebre a expressão pronunciada pelo presidente da República - “acidente pavoroso” - para classificar o massacre dos presos. Como se ao mitigar o discurso, com a palavra inapropriada, também a crise pudesse ser mitigada. Em vão. O governo conseguiu na entrevista criar outra crise.

Há um ano, representantes dos órgãos vinculados ao ministério da Justiça visitaram os presídios do Amazonas e relataram que a situação entre os presos era explosiva e a administração omissa. A mesma que autorizou a entrada de parentes para festejos de fim de ano, facilitando com isso a entrada de armas, celulares e drogas. “Não houve revista, os parentes dos presos entraram como quiseram”, diz um guarda. Em outubro, o CNJ qualificou as condições no Compaj como “péssimas”. A crise estava instalada, só faltava acender o pavio. E foi o que aconteceu na manhã do dia 1º de janeiro de 2017.

O porta-voz que fala demais

O governo designou como porta-voz dessa crise o ministro da Justiça Alexandre de Moraes. Erradamente. Há um consenso entre os especialistas em gestão de crises que a escolha do porta-voz é fator decisivo para o sucesso ou o fracasso de uma gestão de crise. Não que o ministro da Justiça não devesse estar à frente de uma crise que diz respeito diretamente à segurança, por envolver Polícia Federal, governos estaduais, Polícia Militar e vários órgãos ligados ao ministério que tratam do problema penitenciário no país. A questão não é o cargo, nesse caso, mas a pessoa que está ocupando o cargo.

Alexandre de Moraes já provocou outras crises no governo, sempre com escorregões verbais e excesso de exposição. Desde as Olimpíadas, na famosa operação que prendeu alguns hackers e blogueiros brasileiros, confundidos com perigosos terroristas, até o vazamento antecipado de uma nova operação da Lava Jato (sempre confidenciais), o ministro assumiu um protagonismo desnecessário. Holofote é com ele mesmo. Ele parece ter uma obsessão por aparecer na mídia e isso em situações de crise, além de desaconselhável, representa um grande risco.

Na primeira entrevista em Manaus, no dia seguinte à tragédia, o ministro inicialmente tentou descaracterizar os assassinatos como “brigas de facções”, como se isso fizesse alguma diferença para a gravidade dos crimes. O governo do Amazonas desmentiu o ministro, ao confirmar que foram assassinatos premeditados, como de fato se comprovou. A maioria das vítimas pertencia ao grupo criminoso PCC. Os demais seriam vítimas do chamado "efeito colateral". Estavam no lugar errado na hora errada. Depois, o ministro tergiversou sobre ações do Plano Nacional de Segurança e alardeou mais de R$ 1,2 bilhão de recursos liberados pelo governo no apagar das luzes de 2016, como se isso amenizasse a falta do que dizer para o massacre de Manaus. Segundo a revista Veja, “Alexandre de Moraes tentou engrupir a nação com um plano de segurança que não passa de uma colcha de remendos costurados às pressas, sem prazo, sem meta – sem seriedade”.

Continuando na sucessão de entrevistas, algumas desnecessárias, o ministro voltou para Brasília e continuou falando sobre os assassinatos, sem ter todas as informações. Cobrado pela imprensa por não ter se pronunciado, quatro dias depois do massacre, o presidente Temer fez uma reunião no Palácio do Planalto e na abertura falou à imprensa. Ao seu lado, lá estava o ministro da Justiça. Este, provavelmente, brifou o presidente para tentar eximir o governo federal de responsabilidade: “Vocês sabem que lá em Manaus o presídio era terceirizado, era privativado, e portanto não houve por assim dizer uma responsabilidade digamos muito objetiva, muito clara, muito definida dos agentes estatais”, disse o presidente.

O ministro desinformado induziu o presidente ao erro e enfatizou na mesma entrevista: “Ao verificar os fatos, houve falha da empresa (que administra o complexo). Não é possível que entrem armas brancas, facões, armas de fogo, uma escopeta... e nós todos ficamos sabendo dessa entrada bem antes, pela Internet, bem antes porque os próprios presos tiraram “self “, ou seja celulares lá dentro... quem tinha a responsabilidade imediata de verificar essa entrada? A empresa que faz a segurança.”

Ora, a segurança das unidades, mesmo onde existem empresas privadas, contratadas por licitação pública para administrar o cadastro, alimentação, assistência social, saúde, rouparia, etc. da prisão não é realizada por elas, porque essa função é vetada pela Lei de Execuções Penais. A segurança dos presos, incluindo revistas, porte de armas, uso de cassetetes, etc. é prerrogativa dos agentes públicos. O ministro não sabia disso? E nem o presidente? Tentar transferir a responsabilidade ou “terceirizar” a crise representa um dos maiores erros de empresas ou governos em situações negativas. “Don’t point fingers!”, diz Steven Fink, especialista americano em gestão de crises.

No dia seguinte à reunião, estoura outro massacre de 33 presos na Penitenciária Agrícola Monte Cristo, em Boa Vista, Roraima (onde em outubro de 2016, dez presos acabaram mortos por rivais). E continua o ministro porta-voz, com a ladainha de equívocos. Na primeira entrevista, ele novamente tenta se esquivar de responsabilidade sobre o segundo massacre em cinco dias. Ao dizer que a governadora de Roraima não havia pedido apoio do Governo para o sistema prisional do Estado, mas para a “segurança pública” (certamente mal informado por sua assessoria), foi desmentido pelo governo de Roraima, poucos minutos depois, ao divulgar ofício de 21 de novembro – em que pede “em caráter de urgência apoio do governo federal, bem como da Força Nacional de Segurança em virtude dos últimos acontecimentos no sistema prisional do Estado de Roraima”. O ministério pouco depois divulga nota reconhecendo o equívoco do ministro. Como manter um porta-voz, numa situação de crise grave, que em três entrevistas capitais comete esses equívocos?

O governo foi reativo e apanhou

A atitude do governo nos dois massacres - o do Comparj, o maior desde a morte de 111 presos no Complexo do Carandiru, em S. Paulo, em 1992 - foi reativa, agindo por impulso à medida que a pressão ia crescendo. Com isso, deixou se consolidar a imagem da falta de controle, de desconhecimento da situação e da lentidão em reagir, quando solicitado. Todos pecados mortais quando se trata de crise grave. A quantidade de porta-vozes nessa situação também representa um empecilho à gestão, onde são exigidas atitudes racionais, rápidas e decisivas, além de prejudicar a transmissão de mensagens verossímeis e com credibilidade para se acreditar que o governo realmente está no comando da situação. A dispersão da mensagem, num tema tão complexo, reforça a ideia de descontrole.

Na incapacidade de assumir o controle efetivo, autoridades torcem para que as coisas se acalmem de forma natural, passada a onda de rebeliões. Isso, porque o governo não tem força suficiente para mudar esse panorama a curto prazo, tantos são os interesses que rolam por trás das prisões brasileiras. A discussão sobre a conveniência da gestão privada, como ocorre no complexo de Manaus, pilotada por parte da mídia e de algumas autoridades, é apenas pano de fundo para fugir da essência da crise prisional. Governadores pedem trégua e votos a traficantes; quem manda nos presídios são as facções e o trabalho do Judiciário - que contribuiria para desafogar presídios e criar vagas - é lento e burocrático. Nessa crise, poderíamos dizer que todos estão devendo alguma coisa.

Na sexta-feira, 6, o ministro da Justiça ficou três horas tentando adiantar pontos do Plano Nacional de Segurança, que será anunciado ainda este mês. Foi apenas uma forma de preencher o noticiário com factoides e anúncio de soluções pouco exequíveis a curto prazo. Mais uma colcha de retalhos, criticou a grande mídia. Até o anúncio de construção de cinco presídios nacionais pareceu mais uma jogada de marketing do que um projeto efetivo. Já que não há dinheiro nem condições práticas de construção de cinco presídios nos próximos anos. Especialistas ouvidos pela imprensa dizem que  “resolver o caos brasileiro depende menos da construção de novas penitenciárias e mais do redirecionamento das políticas de segurança”.

No meio da crise de comunicação que as tragédias do Amazonas e Roraima provocou nos governos federal e estaduais, não faltou até um Secretário do Governo Federal que declarou a um colunista: “Eu sou meio coxinha sobre isso. Sou filho de polícia, né? Sou meio coxinha. Tinha é que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana.” Depois disso, ainda relutou em pedir demissão, o que deveria ter acontecido imediatamente, pelo total despreparo para o cargo. É o que dá indicações políticas para postos do governo e pronunciamentos sobre tema não afeto à área de competência.

Em resumo, numa semana caótica para a segurança brasileira, as tragédias expõem com toda a crueza como as autoridades estão perdidas nesse assunto. Por mais que o ministro, governador, secretários tenham gastando tempo e discurso para explicar o que aconteceu, o fato concreto é: o Estado e o governo perderam o controle das prisões brasileiras; facções mandam nesses complexos que são uma fábrica de bandidos, com raríssimos casos de recuperação; o Brasil prende muito e mal; os governos estaduais não controlam as facções e jogam a culpa para as autoridades federais. E, se você não tem fatos, acaba tentando criar factoides, o que não bate com as regras básicas de uma boa comunicação de crise.

Outros artigos sobre o tema

Por trás dos massacres - Editorial "O Estado de S. Paulo".

 

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