santa maria kiss fotoHá dois anos ocorria a segunda maior tragédia nacional numa casa de espetáculos. A morte de 242 jovens, a maioria estudantes universitários, chocou o país e revelou como a vida humana é pouco valorizada quando se junta ganância empresarial, irresponsabilidade, omissão e incompetência do poder público para fazer cumprir a lei.

Esses ingredientes estão por trás da maioria das tragédias que ceifam vidas no Brasil e no exterior, principalmente acidentes fatais. Os empresários miram no lucro fácil. Esquecem, na maioria das vezes, que estão lidando com pessoas, com o bem mais precioso que existe na face da Terra. Basta ver os últimos acidentes com vítimas fatais, como o navio de cruzeiros Costa Concordia, em 2012; o Ferryboat "Sewol" na Coreia do Sul, em 2014; incêndios rotineiros em fábricas de roupas de Bangladesh; acidentes aéreos, causados muitas vezes por falha humana ou de equipamentos, todos com dezenas de mortos.

Da mesma forma os governos. Se olharmos para as nossas crises urbanas neste 2015, que vão da guerra no trânsito aos problemas na saúde pública, na segurança das grandes cidades, passando pela crise hídrica ou elétrica, sem falar na falta de respeito ao consumidor, por parte das empresas, veremos que em todas elas predomina o descaso com a vida e os direitos do cidadão. O respeito a esses direitos virou exceção no país, até mesmo no serviço público. Chama a atenção, quando deveria ser uma rotina.

A impunidade, combinada com o descaso na fiscalização, também contribui para que novas tragédias continuem ocorrendo. Santa Maria foi o grito de alerta, simbolizado na dor de milhares de parentes, que perderam entes queridos de forma gratuita e irresponsável, de que há algo muito errado neste país.

Ninguém até agora foi condenado literalmente pela tragédia. O processo se arrasta na Justiça, sempre lenta e burocrática, e está em fase de instrução. Todos sabemos quem são os culpados. Mas as filigranas da lei acabam dificultando apontar, julgar e punir os transgressores. Essa demora acaba dando a sensação de que não importa quanto de irregularidade se cometa para maximizar o lucro; a punicão se chegar, irá demorar. E provoca a absurda sensação de que o crime compensa.

Segundo análise da revista Veja, "até agora já foram ouvidas 179 pessoas – 116 sobreviventes, 16 testemunhas de acusação e 49, de defesa. Nos próximos meses, está agendado o depoimento de mais 26 pessoas, entre elas os 24 peritos do Instituto-Geral de Perícias (IGP), que fizeram a análise técnica da planta e dos documentos da boate. Em seguida, os quatro réus serão interrogados e só depois o juiz Ulysses Fonseca Louzada, titular da 1ª Vara Criminal da Comarca de Santa Maria, emitirá uma das quatro sentenças possíveis: manter a acusação por dolo, levando os réus ao tribunal do júri; tornar o homicídio culposo (quando não há intenção de matar), fazendo com que eles sejam julgados por um juiz; encerrar o processo por falta de provas; ou isentá-los de culpa da tragédia." Os familiares continuam a luta por responsabilizar os culpados, principalmente dos omissos agentes públicos, mas é uma batalha que pode se arrastar por anos.

O funcionamento daquela boate, em pleno centro da cidade, durante três anos, é o atestado do que acontece de irregular nas barbas dos governos e não é coibido. Imaginemos o que não estará acontecendo nos bastidores, nos grotões do Brasil, onde a fiscalização não chega e os brasileiros são esquecidos. O incêndio de Santa Maria precisa ser recordado a cada janeiro como um símbolo do desprezo pela vida, sob o olhar complacente das autoridades responsáveis e governantes, uma rotina no dia a dia de nosso país.

De louvável nesse período, o belo trabalho desenvolvido por estudantes, médicos, assistentes sociais e a população de Santa Maria. Os cerca de mil parentes atingidos pela tragédia têm um serviço gratuito de apoio psicológico e social que os ajuda a suportar a dor da perda.

Em janeiro de 2013, fizemos um artigo (reproduzido abaixo) “Os verdadeiros culpados da tragédia de Santa Maria”. Lamentavelmente, na essência ele continua atual. Dois anos depois, pouca coisa ou nada mudou. Melhorou alguma coisa nos estádios de futebol, com o Estatuto do Torcedor, mas continuamos sujeitos a tragédias semelhantes. Infelizmente, o Congresso Nacional, as autoridades públicas só se lembram de apertar o cerco aos empresários relapsos depois das tragédias consumadas. Passado o período de comoção, todos esquecem e voltamos à nossa rotina de desrespeito à lei.

Os  verdadeiros culpados da tragédia de Santa Maria

João José Forni

*Artigo publicado em 29/01/13, nos sites www.comunicacaoecrise.com e Focaia – Agência Jr de Jornalismo; e em 02/02/13, no jornal online Congresso em Foco e no site Resistência Democrática.

Passados os primeiros dias de comoção pela tragédia de Santa Maria, é hora de uma reflexão mais racional do episódio e seus desdobramentos. Muita gente tem opinado desde domingo de madrugada.  Alguma análises são de especialistas em risco, explosivos e segurança.  Cada entrevista reforça a cadeia de erros e omissões que levaram a essa tragédia.

Peritos mostram a inadequação do material utilizado no teto para isolamento acústico; bem como a imprudência de integrantes da Banda em brincar com fogo, num ambiente com material inflamável, de fácil combustão, lotado e fechado. Outros, aproveitam para tirar um dividendo político, como sempre acontece nas tragédias. Prometem agora “rigorosa” fiscalização nas casas de espetáculos.  Chegaram atrasados.  Por que não faziam antes? Governadores e prefeitos correm para mostrar serviço, após as portas arrombadas.

Talvez porque suas excelências e demais políticos tenham acordado do pesadelo com as consciências pesadas. Por que não fizemos nossa parte? Mas relaxem. Essa pseudo-preocupação com a segurança não dura mais de 30 dias. Até chegar outra crise. Daqui a um mês, o tema sai de pauta e Congresso, assembleias legislativas ou câmaras de vereadores irão se preocupar com salários, cargos e outras disputas paroquiais.  Cada um irá cuidar dos próprios interesses.

Tem sido assim nas tragédias por enchentes, secas, desabamentos. Como no Rio de Janeiro, onde dois anos depois da catástrofe da região serrana, que matou mais de 900 pessoas e deixou centenas de desaparecidos, 5 mil desabrigados continuam sem teto. E o estado paga aluguel. Sem falar nos prefeitos de algumas cidades que desviaram o dinheiro que iria para os desabrigados. Quem jamais esquecerá essa lamentável tragédia no Sul serão os pais, irmãos, avós, maridos, mulheres e demais parentes de quem ficou naquela ratoeira.

Outras análises ou são emocionais, fruto do desespero e revolta dos pais, parentes e amigos dos jovens mortos, e com toda a razão. Ou, da parte de policiais, palpiteiros de plantão e até mesmo de algumas autoridades,  são descabidas, porque não tocam no ponto crucial dessa crise. Como aquela boate podia estar funcionando? E não era uma boate de periferia, frequentada pelo Brasil esquecido, que não reverbera na mídia ou nas visitas dos presidentes, quando atingido por tragédias. Era a principal casa de espetáculo noturno da cidade de 240 mil habitantes. Todo mundo conhecia e frequentava.

Surpreende, na avaliação das autoridades, sobre essa tragédia, o não reconhecimento de que os principais culpados do incêndio e da morte de centenas de jovens, presos naquela ratoeira em que se transformou a boate, não são só os integrantes da  Banda, que acabaram presos. E nem apenas os empresários gananciosos. Como tantos outros empresários no país, eles estão se lixando para os consumidores, preocupados apenas em faturar.

Os principais culpados são o Corpo de Bombeiros de Santa Maria, a Prefeitura Municipal -  com toda a rede de fiscalização – e o governo do Estado, ou seja, o poder público. A estes compete, em última instância, junto com o Poder Legislativo, criar, regulamentar e fiscalizar as leis. Eles não arrecadam impostos para isso? Todos eles, juntos, naturalmente, com os irresponsáveis empresários, são os verdadeiros culpados.

Por que o Corpo de Bombeiros e a Prefeitura, principalmente?  Eles são responsáveis pela liberação de qualquer estabelecimento comercial na cidade: casas comerciais e de diversões, botecos, lojas, etc. A boate estava funcionando com alvará vencido desde agosto. Não poderia estar funcionando, portanto.  Se não, vejamos.

 Se você hoje quiser abrir  legalmente uma lojinha na garagem, precisa de um alvará da Prefeitura da cidade e deve instalar equipamentos exigidos pelos bombeiros, além de outros registros. Se você não tiver alvará e os equipamentos anti-incêndio, você pode ser multado ou impedido de funcionar.  E por que a boate estava irregular, em pleno centro de Santa Maria? Como não era fiscalizada, passou ao largo da Prefeitura e do Corpo de Bombeiros. Será que eles tinham conhecimento que o alvará estava vencido? Se sabiam, se omitiram. Se não sabiam, não cumpriam com as obrigações do poder público.

Por trás das tragédias brasileiras, quando se mergulha nas causas, há sempre uma cadeia de erros: irresponsabilidade, descuido, corrupção, omissão do poder público; o consagrado “jeitinho” brasileiro do malandro, que atropela a lei e vai tocando o negócio, faturando, cometendo abusos, até o dia em que a casa cai.

No caso de Santa Maria, a história pregressa não é de hoje. Ali, a ética e a lei eram atropeladas todos os dias. Não se obedecia à lotação permitida; não havia saídas de emergência; havia obstáculos e atropelos na hora de pagar a conta, como testemunham frequentadores; a Banda fazia pirotecnia num ambiente com um teto inflamável. Isso era habitual. Essa boate é o símbolo da irresponsabilidade e de falta de compromisso que campeia em outras Santas Marias pelo país.

É preciso investigar qual a instância da Prefeitura que liberou essa boate, há três anos. Quando permitiu uma casa de shows para cerca de mil pessoas, funcionar com uma única entrada e saída, sem portas de emergência e janelas. É preciso investigar por que e como foi liberado esse alvará; as relações dos proprietários com as autoridades locais. Quem eram os padrinhos dos empresários? Quem são esses empresários?

Nas crises, vítimas esperam segurança do poder público

O prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, em entrevista à CBN, apressou-se em se eximir da responsabilidade, ao atribuir a fiscalização ao Corpo de Bombeiros. Um erro básico nas crises é terceirizar a culpa, fugir da responsabilidade. O prefeito deve assumir que a Prefeitura errou. Sua administração vai ficar marcada na história de Santa Maria, para sempre, pela maior tragédia do Rio Grande do Sul.  Ainda na terça-feira, a Prefeitura desencavou um decreto antigo, em que, alega, teria transferido ao Corpo de Bombeiros a responsabilidade pela fiscalização das casas de espetáculos. O Corpo de Bombeiros recebia verba para isso. E daí? Isso não exime a Prefeitura da cidade de responsabilidade.

Nas crises, o que a população espera do poder público é segurança. Quando ele não responde por essa segurança frustra as expectativas dos constituintes. Segurança que os jovens na boate não tiveram, quando foram lá para se divertir. Não competia a eles, na inocência e despreocupação da juventude e na empolgação do divertimento, fiscalizar a ratoeira em que tinham entrado. Eles pagam impostos. Confiavam em que o Poder Público cumpria sua parte. Mas ele não cumpriu. É muito rápido e implacável em cobrar impostos, com multas, mas incompetente em fiscalizar. Essa é a verdade.

Mas há outros culpados na cidade. A imprensa, o Ministério Público, o Judiciário, e até mesmo o Corpo de Bombeiros, ninguém frequentou essa boate durante três anos? Se alguém ligado a essas instituições frequentou, por que nenhum deles denunciou que ali não existia uma boate, mas uma verdadeira armadilha para os frequentadores? Nenhum jornalista investigativo, promotor, desembargador, juiz, engenheiro, sei lá, outras autoridades, entraram naquela boate em três anos? Por que não ativeram iniciativa, coragem e discernimento para denunciar? Tão óbvias, agora, são as irregularidades daquele prédio, em pleno centro da cidade.

O que fazia o Corpo de Bombeiros, tão eficiente em salvar pessoas, em outras tragédias; e tão incompetente para evitar a morte de 242 jovens e ferimentos graves em mais de 100, ao se omitir em fiscalizar a segurança daquele local?  E agora vem o Comandante do Corpo de Bombeiros tentar amenizar o erro e a culpa da corporação, afirmando que aquela porta era adequada para o número de pessoas. Poupe-nos Senhor Comandante. Em respeito aos jovens que ali morreram e às suas famílias, pela incompetência de sua corporação. E de todos os que nessa cadeia de irresponsabilidade deveriam ter fiscalizado e fechado aquela arapuca.

Depois da tragédia, aparecem soluções para tudo. Criam-se factóides, como o das prisões dos membros da Banda e dos empresários. É certo que também ela foi irresponsável, por brincar com fogo dentro de um tanque de combustível. A Banda, como os seguranças, são apenas agentes que contribuíram para acender o pavio de um prédio que estava minado pelos empresários. Se for para prender ou apontar todos os culpados, muita gente está solta ainda.  E provavelmente nunca serão presos.

Este artigo foi atualizado em 01/02/13 e, com o número final de vítimas, em 27/01/15.  

Foto: Juliano Mendes/Ag.RBS

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