Getulio Vargas"Todos passeiam, vão aos teatros, divertem-se. Eu fico só, trabalhando. Não me queixo, nem maldigo a sorte. Sorrio apenas dos que supõem que este posto seja um gozo, e que eu esteja aqui para servir-me e não para servir." (Getúlio Vargas)*

“Quem foi Getúlio Vargas? Um político genial? Um oligarca com preocupações sociais? Um revolucionário que mudou o Brasil a ponto de a história brasileira dividir-se em antes e depois da sua revolução de 1930? Um ditador que governou com mão forte uma nação amordaçada durante os oito anos do Estado Novo? Um maquiavélico que soube flertar com o nazismo para melhor vender o seu apoio aos aliados americanos na Segunda Guerra Mundial?"

Getúlio Dorneles Vargas (1882-1954)

“Um homem frio e calculista que só amava o poder? “O pai dos pobres” que deu ao Brasil a CLT, o salário mínimo e a industrialização? Um democrata, eleito pelo voto direto, que se suicidou, em 24 de agosto de 1954, para lavar a sua honra manchada pela “sanha” dos seus inimigos? Um homem reservado que amava as mulheres e esbanjava senso de humor?

“Só uma palavra pode defini-lo integralmente: personagem. Protagonista de uma época que nunca fez greve de acontecimentos, Getúlio encarna o melhor da ficção sob a forma de verdade histórica: contraditório, complexo, dramático, profundo, trágico, apaixonado, glacial, autoritário, gentil, patético, solitário, articulador político incansável, portador obsessivo de um projeto nacional para o Brasil, estrategista incomum, pessoa sensível, capaz de rir de si mesmo, suicida.”

Assim começa a “orelha” do romance histórico Getúlio, de Juremir Machado da Silva, ao introduzir o leitor a uma obra de ficção que mostra Vargas na intimidade e na solidão do poder. Certamente é o brasileiro do século XX sobre quem mais se escreveu artigos, reportagens, livros históricos, políticos, romances, além de marchas de carnaval, músicas, literatura de cordel, documentários,  filmes, o mais recente lançado este ano, e que ainda está em cartaz.

"Ao ódio, respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram, respondo com a minha vitória." (Carta-Testamento).

Até hoje, passados 60 anos, Getúlio continua a dividir opiniões entre o presidente que tirou o Brasil do atraso, da República Velha, das fraudes nas eleições, aos conchavos dos grupos que se revezavam no poder, para quase tudo o que o Brasil tem hoje em matéria de leis trabalhistas e de base industrial. Entre o ditador, dos primeiros 15 anos, ao democrata que foi eleito Senador por oito estados, e voltou presidente, em 1950, “nos braços do povo”, como se costumava dizer então.

“Antes dele, o Brasil era um país em estágio pré-industrial; em poucos anos, a era Vargas construiu uma indústria siderúrgica imensa, revolucionou a infraestrutura de transportes e energia, lançou as bases da indústria petrolífera e incorporou o proletariado na vida nacional. Houve, no entanto, um preço a pagar por isso, e os efeitos dessa dívida são sentidos até hoje” (Apresentação do livro Getúlio Vargas, a Esfinge dos Pampas, do americano Richard Bourne, 1974).  

Quem quiser conhecer esse brasileiro controverso, advogado, parlamentar, raposa política, fazendeiro gaúcho que se manteve fiel às tradições, mesmo depois de se tornar o homem mais poderoso do país, idolatrado pelas massas, criticado por intelectuais e políticos da oposição, admirado pelas mulheres, encontra, atualmente, uma das mais completas bibliografias escritas sobre Vargas, pelo historiador cearense Lira Neto, em três volumes, divididos em períodos distintos da vida de Getúlio (1882-1930), (1930-1945). Acaba de sair o terceiro e último volume, que vai de 1945 até o dia da morte, em 1954.

"Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso". (Diário, 1930).

Já os bastidores da vida de Vargas, por pelo menos 12 anos (1930 a 1942), os primeiros no poder, têm outra fonte espetacular, em documento escrito pelo próprio Vargas,  no “Diário de Getúlio Vargas”, em dois volumes, anotações que ele fazia a lápis, em sua maior parte, quase todos os dias, em cadernos, muitos cadernos, que ficaram em poder de sua filha, Alzira Vargas, e foram catalogados e publicados pela neta de Getúlio, Celina Vargas do Amaral Peixoto. Os originais estão disponíveis na internet.

Sob qualquer ângulo que se estude Vargas, e não há como, se alguém quiser entender o Brasil, deixar de estudá-lo profundamente, teremos surpresas, principalmente para entender porque, apesar de um regime de força nos primeiros anos, ele era idolatrado pelas massas. Talvez o mais populista e popular de nossos políticos.

"Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida." (Carta-Testamento).

titulo de eleitor de GetúlioO getulismo nas décadas de 30, 40, 50 e até o início dos anos 60 era como uma religião, uma doutrina, bandeira empunhada por centenas de políticos, muitos anos após a morte do presidente. Precisou um Golpe Militar, protelado por pelo menos dez anos em 1954, com a comoção popular pelo suicídio de Vargas, para tentar silenciar pelo menos o discurso populista e os herdeiros de Vargas, quase todos cassados politicamente, mas não o seu legado.

Alguns presidentes, entre eles Fernando Henrique Cardoso, pregaram que deveríamos nos libertar das amarras do varguismo. Outros, como Lula, quando atacado pela imprensa, após as denúncias do mensalão, quiseram até se comparar a Getúlio Vargas. O primeiro não conseguiu afastar o fantasma de Getúlio, até porque não se apresentou até agora um projeto de país que substituísse a criticada "herança de Vargas". De outro, comparar a crise do mensalão, em 2005, com o cenário de instabilidade política, golpe e vácuo de poder de 1954 é tentar violentar a História.

"Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte". (Carta-Testamento).

Alguns acontecimentos na história do país representam realmente um grande divisor de águas. Poucos são realmente marcantes. Certamente, o suicídio de Vargas, na manhã de 24 de agosto de 1954, após vários dias de crise política, protagonizada pela oposição udenista, capitaneada pelo então deputado Carlos Lacerda, que pregava a deposição do presidente, e uma apuração rigorosa das denúncias que pairavam sobre o Palácio do Catete, é o mais notável acontecimento político da segunda metade do século XX. Definitivamente, não há na moderna história do país um personagem tão controvertido e que desperte tantas paixões quanto Getúlio.

"Saio da vida para entrar na História". (Carta-Testamento).

O suicídio de Vargas, historicamente, rivaliza, talvez, com a virada de poder pelos militares, ao derrubar um dos mais fiéis herdeiros do getulismo, o presidente João Goulart, o Jango, em 1964. O golpe de 64, abortado em outras ocasiões pela força do populismo getulista, uma delas na posse de Juscelino Kubitschek, em 1956, certamente tinha como objetivo principal, além de afastar o que eles chamavam de “fantasma do comunismo”, sepultar definitivamente a "malfadada" herança de Vargas.

Depoimento

No dia 24 de agosto de 1954, eu cheguei, como todas as manhãs, às 8 horas no Grupo Escolar de São Sebastião, distrito na zona rural de Dom Pedrito-RS, na aula do primeiro ano primário. Logo após entrarmos, não demorou muito tempo, talvez 30 minutos, a professora foi chamada e, chocada, veio nos avisar que as aulas seriam suspensas naquele momento, porque o Repórter Esso, o noticioso mais famoso na época, havia informado que o presidente Getúlio Vargas tinha se suicidado poucos minutos atrás (ouça), no seu quarto, no Palácio do Catete. Todas as crianças deveriam se dirigir para suas casas, em silêncio.

Desde pequenos, nos acostumamos a encarar a figura de Getúlio Vargas, no Rio Grande do Sul, como uma pessoa da família. Difícil alguma criança que não tivesse ido a algum comício, numa época em que não havia televisão e as campanhas se faziam corpo a corpo, seguidas sempre de um churrasco, uma festa. Lembro da comoção instalada quando cheguei em casa, na manhã de 24 de agosto, como se um parente tivesse morrido. As rádios tocavam músicas fúnebres ou marchas militares e muitos locutores choravam. E repetiam à exaustão a leitura da Carta-Testamento de Vargas. Ninguém sorria.

Meus pais, ouvidos colados ao rádio, não acreditavam no que estava sendo transmitido. Ambos também choravam. Lembro-me que algumas vezes, na insegurança da infância, pensávamos, realmente, que o mundo iria acabar. Aquela manhã de 24 de agosto de 1954 me deu essa sensação.

O suicídio de Getúlio Vargas, realmente, marcou a infância de todas as crianças, adolescentes e adultos daquela época, pelo menos no Rio Grande do Sul. Até porque a política não era, como hoje, um tema quase abominado pela juventude, com tantos apelos tecnológicos e modernos, somados ao desencanto com os nossos políticos.

As crianças e os jovens, há 40, 50, 60 anos, na falta de outros divertimentos, participavam da empolgação das campanhas políticas, incentivados pelos pais. Frequentar comícios, conhecer os personagens mais famosos, distribuir "santinhos" nas campanhas, colar cartazes, tudo fazia parte da cultura política de toda uma geração, que cresceu sabendo quem eram Getúlio, Juscelino, Jânio, Jango, Alberto Pasqualini, Teixeira Lott, Leonel Brizola, Ildo Meneghetti, Carlos Lacerda, Ademar de Barros e tantos outros.

Hoje, ao se comparar com o que acontecia no passado, até pelo engessamento legal que as manifestações políticas sofreram, além das pesquisas, que praticamente antecipam o resultado, a política realmente ficou muito sem graça. (JJF)

*Diário de Getúlio Vargas, 1995, v. 2, p. 239.

Fotos: Getúlio, na fazenda em São Borja-RS; Título de eleitor de Getúlio.

Outras fontes sobre o tema

Carta-Testamento de Getúlio Vargas

O tiro que liqudou a Era Vargas

Suicídio não adiou ditadura

O atentado, o suicídio e a carta

Getúlio Vargas

Um dia, um país - Janio de Freitas

Getúlio Vargas: 60 anos do suicídio do ex-presidente

Getúlio Vargas - História - Vídeo produzido pela TV Câmara

Getúlio (Vargas) do Brasil - Vida e obra política - Documentário da TV Senado

Getúlio: a construção do mito - Caminhos da Reportagem

 

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