Golpe de 6451 anos após o golpe militar de 1964, que derrubou o presidente constitucionalmente eleito João Goulart , convém fazer uma rápida reflexão sobre como os acontecimentos históricos se repetem ciclicamente, principalmente em países onde a democracia às vezes é uma “dama” muito cortejada, mas de vez em quando questionada e ameaçada por arroubos autoritários.

Por feliz coincidência, neste momento, estamos concluindo a leitura dos três volumes da magistral biografia de Getúlio Vargas, de Lira Neto*. E exatamente no fim do 3o volume, nestes dias, a leitura se concentra nos últimos meses do segundo governo Vargas, um período de pouco mais de três anos em que ele viveu permanentemente com crises. Guardadas as devidas proporções, assemelha-se um pouco ao cenário atual do Brasil, embora naquela época não tivéssemos um regime político democrático tão maduro quanto o atual, após 30 anos de eleições livres. E nem a história de repressão que o passado de Getúlio representava, pelo período da ditadura, entre 1937-1945, sempre uma ameaça potencial aos que o odiavam.

Se a presidente Dilma tivesse tempo para ler esses últimos capítulos, ela concluiria que o inferno astral que enfrenta está ainda muito longe do sofrido por Getúlio, sob pressão da imprensa, em sua totalidade (um único jornal o apoiava, a Última Hora, de Samuel Wainer, que o presidente ajudou a criar). O líder dos ataques, que beiravam o desrespeito e a falta de compostura, inclusive pessoal, com o presidente, era o ex-deputado Carlos Lacerda, apelidado pelos getulistas de “O Corvo”.

Lacerda declarou em junho de 1950, no auge da campanha política: "O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar."

Pressão dos políticos, sobretudo a chamada “Banda de Música da UDN”, grupo de parlamentares conservadores e arrogantes, que no Congresso não deixava Getúlio fazer nada, sempre arrumando um jeito de tramar derrotas políticas e até o Golpe, junto com os militares, para apeá-lo do poder. A UDN, que ajudou a derrubá-lo em 1945, com os militares, nunca se conformou em ter perdido a eleição de 1950, quando Getúlio “voltou nos braços do povo”, como se costumava dizer. Eles tinham candidato que era virtualmente eleito até às vésperas do pleito, quando Getúlio se lançou e arrebatou a presidência.

Ela decidiu não dar um minuto de descanso para Getúlio durante todo o segundo mandato (1951-1954). E o fez usando de métodos rasteiros, sem levar em conta o interesse nacional. Em sua maioria, eram interesses regionais, paroquiais, partidários. Mais ou menos como vemos hoje em certos setores do país, em que políticos aparentam pousar de patriotas em longos argumentos retóricos, mas estão mesmo mais interessados no seu quinhão de vantagens pessoais ou partidárias, do que num projeto de futuro para o país. Apesar de político até o limite da alma, Getúlio tinha extrema dificuldade de aturar a classe política, com quem viveu às turras tanto nos primeiros 15 anos de poder, quanto no segundo.

Militares sempre à espreita

Assombrados pelo fantasma do comunismo, os militares, que já haviam ajudado a derrubar Getúlio, em 1945, após 15 anos no poder, viam em cada nomeação e gesto de Getúlio uma ameaça às liberdades, principalmente após a nomeação de João Goulart como ministro do Trabalho. Getúlio, sentindo-se sem apoio do Congresso e dos militares, optou, como sempre soube fazer com habilidade, buscar apoio das massas operárias, os “trabalhadores do Brasil”, jargão que o consagrou. E Jango, embora um fazendeiro, era o cara carismático e um nome aceito pelas massas. Menos pelos militares e políticos conservadores, que o viam com desconfiança, como populista e, pasmem, comunista. Pressionado pelos sindicatos e confederações de trabalhadores, Getúlio acenou com 100% de aumento do salário mínimo, o que gerou um movimento de inquietação nos quartéis. Os militares achavam a benesse um absurdo e desconfiavam de um novo golpe de Getúlio, com apoio do "proletariado".

Os quartéis andavam em polvorosa, sempre sob o argumento de preservar o país do “perigo vermelho”, numa época em que se consolidava o período histórico convencionado de “Guerra Fria”: divisão do mundo Ocidental, sob a influência americana; e o Oriental, liderado pela então União Soviética. Desde o primeiro governo Vargas, seus opositores faziam questão de dizer que Getúlio flertava, antes da II Guerra, com os nazistas; e depois da Guerra, com os comunistas. Entenda-se uma salada dessas. Ele nunca dissimulou, de fato, arroubos ditatoriais. Dizia que com o Congresso aberto no Brasil, ele nunca conseguiria fazer as reformas necessárias e sem um alto custo.

Getúlio convivia dia a dia com a ameaça de um Golpe Militar ou com a pressão pela renúncia. Aos 70 anos, comandante da Revolução de 30, que derrubou a República Velha, Getúlio já tinha passado por tudo, desde 1930, que um presidente pode enfrentar no poder: glória, vitórias improváveis, tristezas, decepções, golpe, traições, perdas pessoais de um filho, denúncias de corrupção envolvendo a família, e já não se sentia tão forte para resistir às pressões. Ele estava cansado, doente e decepcionado. Daí mandou o recado aos militares: “Só morto, sairei do Catete”.

Há poucos meses do fatídico 24 de agosto, quando se suicidou, Getúlio se considerou traído pelo próprio ministro do Exército, general Ciro do Espírito Santo Cardoso. Este soube de um manifesto dos coronéis e tenentes-coronéis contra Vargas e nada disse ao presidente, que foi constrangido a demiti-lo em plena crise.  “Prenuncia-se indisfarçável crise de autoridade, capaz de solapar a coesão da classe militar, deixando-a inerme às manobras divisionistas dos eternos promotores da desordem...”, dizia o texto. Nas 82 assinaturas do manifesto, os líderes eram os mesmo militares que 10 anos depois, em 31 de março de 1964, em sua maioria, comandaram o Golpe contra o herdeiro de Getúlio, João Goulart, inclusive um dos seu artífices intelectuais e chefe da Casa Civil de dois governos, Golbery do Couto e Silva.

A morte de Getúlio apenas prorrogou o Golpe dez anos. A comoção popular pelo suicídio deu fôlego para que Juscelino-Jango fossem eleitos democraticamente em 1955, não sem antes outras tentativas de Golpe dos militares. Em 1960, Jânio, o presidente eleito a seguir, após um mandato de apenas oito meses renuncia e abre outro flanco para os militares tentarem de novo outra quartelada. Não concordavam com a posse de Jango. O Golpe foi abortado pela reação popular sob comando de Leonel Brizola, na famosa Cadeia da Legalidade, desencadeada a partir do Rio Grande do Sul.

O Parlamentarismo aceito por Jango, por pouco tempo, não foi suficiente para acalmar a sanha dos militares pela derrubada do Regime, uma obsessão. Jango recuperou o presidencialismo, em plebiscito popular. Os militares sempre “sonharam com aquilo”, desde antes de 1945. Até que conseguiram. E ele veio nos idos de março de 1964, quando Jango prometeu fazer as “reformas de base”, sempre vistas como fantasmas de uma possível “república sindicalista”. Sem apoio popular, militar ou político, atacado também pela oposição e pela imprensa de São Paulo, que no início apoiou o Golpe, a exemplo do Getúlio de 1954, Jango preferiu renunciar, sair do país para evitar o “derramamento de sangue”.

Ontem e Hoje

51 anos depois, o Brasil passa por um dos momento mais conturbados do período da democratização. Apesar das conquistas recentes dos dois últimos governos, quando o Brasil avançou, temos crise política, crise econômica, o maior escândalo de corrupção do país, que pode levar a uma crise institucional. O país atingiu o limite pelos erros cometidos nos últimos anos, com políticas equivocadas de sustentação do desenvolvimento, sem a contrapartida de investimentos, baseando-se na expansão do consumo e do crédito.

Até porque não temos um Congresso forte, não temos estadistas e não temos liderança, fundamental nesses momentos cruciais para um país sair da crise. O núcleo político da presidente Dilma é de uma pobreza ímpar. Não há cultura política naquele meio, pessoas de quem possa se esperar uma solução luminosa para o país. Mais fácil ministros estarem preocupados com o controle da mídia, do que com uma saída para o desemprego ou para a crise ética que permeia o governo. Para agravar esse quadro, a inexperiência política da presidente Dilma, a quem falta jogo de cintura para ouvir, processar e negociar.  

Esse vácuo de liderança é um perigo para os saudosistas do Golpe Militar. Se o ambiente nos quartéis hoje é bem diferente do de 1945, 1954, 1961 e 1964, isso não quer dizer que a história não possa se repetir. Por isso, por mais que as críticas e as manifestações do último dia 15 de março estejam certas, até pela falta de reconhecimento do governo de que está errado, deve-se repelir a triste volta da História. Que os tempos modernos repudiam.

Convém lembrar que a quartelada de 1964 era para durar dois ou três anos, até “estabilizar” o país e abrir caminho para uma eleição livre. Essa quase sempre é a desculpa de quem derruba governos democráticos. O poder seduz. Os militares tomaram gosto pelo poder e só foram sair cinco presidentes militares depois, acomodados em 21 anos de ditadura.

*Getúlio. Da volta pela consagração popular ao suicídio (1945-1954). Lira Neto. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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