IRSUma ação burocrática quase vira escândalo, porque governo, mídia e oposição não souberam administrá-la.

Quase tudo que foi contado sobre o escândalo, envolvendo o governo Obama com o IRS (a Receita americana) na mídia, estava errado. Mas a imprensa dos EUA e internacional ignorou.

Em maio, bem antes do vazamento dos sigilos da Agência de Segurança Americana (NSA), Obama viu-se envolvido em três crises, quase transformadas em escândalos. A primeira foi a descoberta de erros da CIA no ataque de rebeldes à Embaixada dos EUA, na Líbia, que redundou no assassinato brutal do embaixador. Pelo menos o governo não contou toda a verdade, quando o ataque foi divulgado.  

A segunda foi a descoberta de que o Departamento de Justiça dos EUA havia grampeado telefonemas e emails de jornalistas da Associated Press (AP) e da Fox News. Isso tudo no bojo de uma investigação do governo sobre vazamento de informações.  Obama tentou dar uma explicação, numa avant-première do que surgiria um mês depois, quando estourou a bomba colocada na Casa Branca por Edward Snowden, o ex-agente da CIA que escancarou o big brother da NSA.

Quando essas denúncias sobre grampos e o episódio de Benghazi começavam a baixar a poeira, veio outra: a de que o IRS-Internal Revenue Service (a Receita americana), havia concentrado um pente-fino em partidários da oposição, especialmente sobre os radicais simpatizantes do movimento chamado Tea Party.  Pronto. Foi o bastante para a oposição e a mídia conservadora cair em cima de Obama. Agora, em artigo no site de notícias salon.com, o repórter político Alex Seitz-Wald faz uma densa análise de como a mídia errou e ajudou a inflar essa história.

Alguns jornalistas não engoliram a primeira versão, que rapidamente o governo de certa forma assumiu, ao responder e dar várias explicações pela versão de ter fiscalizado de forma discriminatória grupos conservadores, ligados à oposição, ao tempo em que fechou os olhos para os simpatizantes. Colunistas destacados, como David Brooks, do The New York Times, detonaram Obama sobre a “intrusão extrema do IRS, que dificulta o trabalho da imprensa”.

O IRS estava investigando grupos políticos que pediam isenção de taxas. Diante das revelações do artigo, fica evidente que faltou, no caso, melhor apuração da imprensa; posicionamento adequado e definitivo do governo;  e a oposição, ajudada pela mídia, aceitou como verdade as versões e aproveitou a brecha para atacar de forma impiedosa a administração Obama. Falharam todos.

A reportagem publicada no site Salon, nesta semana, diz que os primeiros dias do escândalo da IRS, ocorrido no início de maio, que ia consumir o tempo de Washington, por semanas, seguiu um roteiro: os conservadores ficaram indignados, a mídia ficou excitada, o presidente precisou responder, e até seus aliados se voltaram contra ele ... e só  então, o  inspetor-geral do Departamento do Tesouro divulgou o relatório real que tinha provocado toda a controvérsia - nesta ordem.

Segundo o artigo, é um microcosmo a montagem da saga inteira, que passou de uma catástrofe, com um legado terrível, com dezenas de comentários em colunas políticas, para uma histórica nota de rodapé, no intervalo de seis semanas. O fato, segundo o articulista, é um exemplo clássico de como uma história-escândalo pode dominar Washington e as tevês a cabo, mesmo quando não há nenhum escândalo real. Para quem estuda o comportamento da mídia, o episódio é um prato e tanto.

Embora os relatórios iniciais sobre a segmentação dirigida do IRS fossem muito ruins, o que sugere que os agentes investigavam, com lentes especiais, aplicações isentas de impostos do grupo político Tea Party e de grupos conservadores, os meios de comunicação precipitadamente se agarraram às conclusões, possivelmente levados por jornalistas apressadinhos, e assumiram o pior, desde o primeiro dia, diz o jornalista Seitz-Wald.

“Em vez de fazer apuração mais rigorosa,  para descobrir a verdadeira natureza e o contexto da segmentação feita pelo IRS, ou pelo menos esperar pelos colegas para fazer alguma coisa, a grande imprensa, supostamente liberal, soltou sua gana para mostrar quão difícil pode ser  para  uma Casa Branca Democrática como para um Republicano chegar à frente dos fatos”, diz o articulista. Ele diz esperar que os políticos esgotem a realidade para completar uma história, mas a imprensa tem a obrigação de ser melhor.

O New York Times registra que o IRS, depois de inicialmente ignorar o problema, tentou livrar-se das queixas dos atores políticos e dos muitos grupos conservadores. Isso levou a um relatório de inspeção geral, que expôs o assim chamado “escândalo do IRS”, que mereceu um escrutínio excessivo somente dos grupos de direita e da imprensa conservadora. Os Republicanos imediatamente tentaram pintar um quadro de conspiração na Casa Branca, apesar de não haver qualquer evidência real.

O artigo do Salon deixa claro que “os jornalistas teriam se safado de mais esse erro, também, se a história tivesse a vantagem de ser verdade. “Mas agora, quase dois meses depois, sabemos que, na verdade, o IRS visou investigar  diferentes tipos de grupos , e não apenas somente conservadores. E que, ao final da operação, as únicas organizações cujo status de isenção fiscal foi efetivamente negado foram as comandadas pelos "progressistas.”

Segundo Seitz-Wald, agora sabemos que muitos dos conservadores – pivôs do escândalo - grupos alvos também da investigação, legitimamente cruzaram a linha; e que o relatório produzido pelo IRS foi limitado a apenas um único grupo do Tea Party,  no Congresso Republicano, e que a Casa Branca  não estava de nenhum modo  envolvida  no direcionamento e nem sabia sobre isso até um pouco antes de o público saber . O que, aliás, Obama declarou na coletiva de imprensa, logo após a notícia. Ele foi enfático, dizendo que soube do escândalo pela mídia.

Talvez, tanto o IRS quanto a equipe de comunicação de Obama, falharam ao não produzir no nascedouro da crise um desmentido contundente e definitivo. Talvez a crise tivesse sido debelada no início. A agência IRS só foi se pronunciar em 24 de junho, mostrando que não fez investigação mais acurada sobre os membros do Tea Party, para analisar a isenção de taxas, mas a todos os nomes vinculados às palavras “progressive” ou “occupy”. O documento mostra que o IRS não tinha ideia do que estava fazendo. Quando o tema ocupou o mundo político e ajudou a reforçar o caso com ares de escândalo, a agência deveria ter saído rapidamente desse imbróglio.

 Para Seitz-Wald, “em suma, toda a narrativa do suposto escândalo foi uma  ficção. Mas teve consequências reais, efetivamente atrapalhar a agenda de Obama, não muito tempo depois de uma reeleição retumbante, custando a carreira de várias pessoas e desinformando o público. Sem os devidos esclarecimentos, a oposição acusou Obama de usar o IRS para intimidar os oponentes.

“Não quer dizer que nada estava errado no trabalho do IRS, mas que a transgressão não merecia nem de perto a cobertura que ganhou na mídia. Ainda mais como se fosse um grande escândalo. Mas, em vez de reconhecer o erro ou corrigir o registro, a grande imprensa  simplesmente mudou-se para o próximo jogo. Agora, que foi escancarado que o rei não tinha roupas, vale a pena olhar para trás, o ver o que deu errado.”

Quando a imprensa erra, cai fora

Para o articulista, o ritmo em que o escândalo passou de zero para o nível de um novo Watergate foi de tirar o fôlego, com a narrativa de uma trama nixoniana. Nos primeiros momentos, pela repercussão internacional e o alvoroço que causou à Casa Branca, parecia num novo Watergate. “No programa "Nightly News", da NBC, nesse dia, as primeiras palavras que saíram da boca do correspondente da Casa Branca, Chuck Todd, foram: "remonta a uma tática tipo nixoniana, se quiserem, uma tática política aqui na Casa Branca."

A notícia da interferência no imposto de renda chegou num fim de semana, quando a Casa Branca estava às voltas para explicar o problema em Benghazi - outro escândalo que foi, pelo menos uma das duas peças da campanha publicitária negativa para cima dos democratas naqueles dias. Segundo Alex, os dois escândalos reforçaram-se mutuamente e, juntos, criaram uma história mais poderosa do que qualquer um poderia esperar.

“Na manhã de domingo, os anfitriões, convidados e especialistas nos talk-shows políticos facilmente conectaram os dois episódios e rapidamente havia uma nuvem de escândalo pairando sobre a Casa Branca, de modo que cada uma das pessoas sérias, nos programas da TV a Cabo, acabaram concordando que isso poderia condenar o segundo mandato de Obama”.

O autor do artigo lembra como a imprensa americana de peso reagiu ao suposto escândalo. Sob o efeito das notícias, David Gregory, moderador do NBC News,  invocou a "maldição do segundo mandato";  George Will, colunista político conservador e de renome, do Washington Post, leu a parte dos artigos do “impeachment” de Richard Nixon, que focaram no IRS;  David Brooks, do NYT,  destacou que "os segundos mandatos geralmente são atingidos com escândalo."

James Taranto, colunista do Wall Street Journal, sugeriu que isso poderia ser pior do que um câncer no Presidente. Os argumentos eram tão fundamentados que, por semanas, seria muito difícil alguém se animar com o contraditório. Mas esse era um papel menos para a oposição do que para a mídia, que não deveria aceitar pratos feitos.

Brendan Nyhan, cientista político da Universidade Dartmouth, que estuda o papel da mídia na criação de escândalos, não estava particularmente surpreso, diz Seitz-Wald. "Em outras circunstâncias, os primeiros relatos não poderiam ter imediatamente se transformado em uma tempestade na mídia, mas o contexto era muito favorável para desenvolver um escândalo e assim a mídia, em grande parte, abraça uma história com esse potencial, antes de todos os fatos serem conhecidos", disse ele ao autor do artigo. Este parece ser um vício antigo, que nem a era digital parece ter conseguido corrigir.

Como se constrói o escândalo

 “O que muitas vezes é importante em escândalos não é que alguém violou normas éticas, mas como uma figura pública ou instituição constroem o sucesso pela violação das normas éticas", escreveu o cientista em um  recente trabalho de pesquisa . “Escândalos são construções sociais e o tamanho deles tem muitas vezes pouco a ver com a real gravidade da transgressão ética em questão, e muito a ver com o contexto político e dos meios de comunicação. Em alguns casos, ela só vai se apossar de uma faísca de uma acusação relativamente frágil para detonar uma controvérsia significante, enquanto outros ambientes serão muito menos propensas a incêndios escandalosos".

O articulista conclui que “em outras palavras, é preciso dois elementos para o escândalo - o partido de oposição precisa da mídia (rápida e furiosa não funcionou, porque a imprensa principalmente o ignorou) e a imprensa precisa o furor do partido de oposição para avançar a narrativa do escândalo e dar cobertura política.

Para ele, só quando os interesses de ambos os grupos se alinham em favor de um escândalo, então ele surge. Não é o lugar onde a "maldição do segundo mandato" tem alguma realidade. As condições estão  muitas vezes maduras para o escândalo depois de reeleições presidenciais, quando a mídia está à procura de uma nova história e os partidos de oposição estão procurando uma nova maneira de responder à animosidade de sua base na direção do presidente, agora que ele não pode mais ser encaminhado para uma nova eleição.”

Na segunda-feira, 12 de Maio, a notícia de que o Departamento de Justiça havia obtido os registros telefônicos de repórteres da AP,  enquanto investigava um vazamento de segurança nacional, explodiu outro escândalo. Estava pronto o cenário para desgastar ainda mais a administração Obama.

O articulista observa que a Casa Branca decidiu chegar na frente do escândalo da história, superando Washington, empregando a mesma sabedoria que funcionou tão bem para eles no escândalo da demissão de Shirley Sherrod, em 2010, quando o governo demitiu uma obscura diretora do departamento de Agricultura, antes mesmo de tentar determinar se a fita expondo irregularidades era verdadeira, numa acusação de racismo contra a diretora.  Não era verdadeira. O caso Sherrod foi, em muitos aspectos, uma versão destilada do IRS. Ou seja, quando as versões iniciais, que pareciam contundentes, foram posteriormente não confirmadas ou desmontadas.

Mas em muitos casos, como nesses, o estrago já tinha sido feito, pressionados pelo pânico para responder rapidamente. No caso do IRS, o presidente tomou a rara decisão de responder pessoalmente, chamando de “ultrajantes” a alegada segmentação de grupos conservadores - se fosse verdade, embora a veracidade fosse uma variável pouco levada em conta naquele momento, diante da reação em cadeia dos intervenientes. Todos bateram em Obama. Entre a mídia, a oposição e até o IRS, no primeiro momento só Obama foi correto.

Na mesma noite em que o escândalo estourou e durante a semana seguinte, colunistas famosos de publicações políticas, entre eles Bob Woodward, paradigma do jornalismo americano, se revezaram em atacar Obama e o Partido Democrata, vaticinando que o IRS seria o fantasma que iria assombrar a agremiação.

O efeito deletério da notícia mal apurada

Segundo Seitz-Wald, houve um momento nesse episódio, que não havia como voltar atrás. Em vez de esperar por mais informação para determinar se o IRS tinha mirado também em outros grupos, ou para ver se a Casa Branca estava realmente envolvida (não estava), o articulista diz que a “punditocracy*”  já tinha uma ideia formada sobre o tema.

E ao fazer isso, eles fizeram um desserviço ao público. Em meados de junho, metade do povo americano, erroneamente,  pensou  que a Casa Branca havia ordenado uma fiscalização dirigida da Receita contra grupos do Tea Party. O índice de aprovação de Obama caiu 8 pontos e sua agenda ficou parada por conta dessas crises.

No início de junho, pesquisa conduzida pelo New York Times e CBS mostrava não somente que 68% dos americanos pensavam que a ação do IRS tinha motivação política e não econômica e estava errado ao direcionar investigação aos conservadores. Mas 44% pensavam que a administração Obama estava envolvida. Somente um quarto dos respondentes acreditavam que o IRS tinha agido apropriadamente. Essa foi a imagem que ficou.

Em nenhum momento ninguém parece fazer uma pausa e dizer, vamos esperar para ver o que realmente aconteceu aqui. Bem, quase ninguém, diz o articulista. Carl Bernstein, um dos que descobriu o verdadeiro escândalo de Watergate, em 1972, que derrubou o presidente Nixon, advertiu: "Nós não temos nenhuma evidência de qualquer tipo”.  Por ter dito isso, foi ridicularizado. "Como poderíamos, Carl? É claro que não temos nenhuma evidência disso, mas esse é o motivo pelo qual você faz investigações. Você sabe disso muito bem”, disse ironicamente um colega dele.

O articulista conclui que, eventualmente, nas semanas que se seguiram, novos fatos surgiram e a história do escândalo começou a desmoronar. Ninguém foi capaz de produzir evidências de que a Casa Branca estava envolvida e os envolvidos disseram que não estava. Os Republicanos pareciam estar ofuscados; a mídia ficou sabendo que os grupos liberais também foram alvo do IRS, fato que foi minimizado nas notícias posteriores. A partir do fim de maio, os republicanos começaram a falar sobre o escândalo cada vez menos. Comentaristas sumiram e deixaram de discutir o assunto.  

Jornalistas que se preocuparam em aprofundar-se no suposto escândalo concluíram que ele era nada mais do que pessoas tentando fazer o seu trabalho. Todd disse que os republicanos aproveitaram para " exagerar  a mão" e que era "um escândalo burocrático ", não político.

O colunista Greg Sargent, do Washington Post,  observou: "A idéia foi, então, criar uma atmosfera de escândalo, na esperança de conseguir a imprensa para colocar num quadro de coerência cada fato novo sobre as histórias que se desenrolam, sem nenhum senso de equilíbrio ou perspectiva sobre o quão importante cada nova peça de informação realmente era. Isso funcionou por um tempo, mas o escândalo dos republicanos se superou realmente até produzir uma reação contrária”, pela fragilidade ou falta de elementos concretos na denúncia. John Cassidy, da revista New Yorker, disse que o bafafá sobre o IRS havia se transformado no não-escândalo.

O escândalo do IRS – se houve - principalmente, caiu num segundo plano  e, em seguida, desapareceu sem muito reconhecimento, e muito menos responsabilidade, para as pessoas que ajudaram a criá-lo.  Como diz o ditado do jornalismo, todo mundo lê a reportagem falsa e ninguém lê a correção, conclui o articulista.

Lições de crises

"Minha objeção para a cobertura da mídia é que muitos repórteres e comentaristas estavam mais interessados na história do escândalo de Obama do que no fato em si", no que havia de irregular na história,  "Eu culpo a imprensa por isso? Sim, mas, ao mesmo tempo, é a realidade de como a mídia funciona e é improvável que mude."

Alex Seitz-Wald conclui dizendo que os Conservadores admitem uma coisa certa sobre os meios de comunicação - muitos de seus membros pessoalmente inclinam-se para os liberais. Mas o que está errado é supor que isso se traduza numa cobertura favorável aos democratas. Muitas vezes é o contrário. Sensível às críticas de preconceito e ansioso para provar a sua independência e objetividade, a mídia muitas vezes parece ter um excesso de zelo para corrigir, mostrando menos misericórdia para com as administrações democratas do que eles fazem para os republicanos.

Dessa história, que foi aos poucos perdendo espaço na mídia internacional, porque ele foi ocupada pela bomba Edward Snowden, podemos tirar várias lições. Uma delas de que toda a notícia geradora de escândalo, principalmente político, deve ser apurada à exaustão. Os ingredientes são perigosos, porque lidam com interesses muito difusos.

Jornalistas, blogueiros e redes sociais não podem embarcar na onda de profissionais apressadinhos.  A pressão dos blogs e das redes reduziu, se não eliminou os filtros. A notícia chega, cai na rede sem uma apuração mais rigorosa. As empresas ou governos, apavorados e pressionados, apressam-se em responder, ainda sem uma apuração cuidadosa. Com isso, aumentaram os riscos de deslizes ou coberturas mal feitas, como aconteceu nesse episódio. 

*pessoas que sedimentaram um conceito ou opiniões sobre um tema e os expõem publicamente.

Outros artigos sobre o tema

New Yorker - The vanishing IRS scandal

New York TimesIRS Scandal – Questions and Answers

New York Times - The Real IRS Scandal

Washington Post - The Obama IRS scandal retreats to the fever swamps

Washington Post - IRS Scandal overreach?

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