passeata rioO preço da passagem pode ser apenas o estopim, ou o pretexto. Comum nos países desenvolvidos, principalmente após o recrudescimento da crise econômica, a partir de 2007, os protestos nas ruas chegaram ao Brasil. De forma desorganizada e turbulenta. Muito adequados ao que tem acontecido aqui com outros movimentos semelhantes. Cada grupo se acha no direito de ocupar ruas, cidades, interromper o trânsito, invadir fazendas, prédios públicos, agências bancárias e outras instalações.

Parece que o ato de destruir equipamentos e prédios se transforma numa catarse coletiva. Desafiar o poder, simbolizado na propriedade pública ou privada, daria um sentido a quem não conseguiria tomar o poder pela força. Por isso, a população, embora as pesquisas mostrem resultados diferentes, vê com certa desconfiança esses movimentos de protesto, que descambam para o vandalismo. Nas redes sociais, as reações se dividem dos que apoiam aos que abominam de forma até grosseira e discriminatória. .

Virou moda

Não é de hoje que grupos – organizados ou não - se acham no direito de amanhecer de mau-humor, convocar vizinhos ou parentes, pegar alguns pneus, botar fogo e interromper ruas, avenidas ou estradas estaduais ou federais. Até os índios, nos últimos dias, descobriram que a forma de chamar a atenção e aparecer na TV é interromper o trânsito numa movimentada rodovia federal.

Os governantes têm extrema dificuldade de reprimir esses abusos. Além dos pruridos políticos, existe o risco de uma intervenção se transformar numa nova crise, como aconteceu recentemente no Mato Grosso do Sul, quando a PF cumpriu ordem judicial para retomar uma fazenda invadida. A intervenção redundou na morte de um índio, conflitos, demissão da presidente da Funai, tudo com repercussão internacional.

O império do caos

Quando a Lei é atropelada e o Estado se omite, resta o império do caos. Reivindicações são direitos naturais, exercidos em todo o mundo. Mas por que em alguns países as passeatas não descambam para a violência, o vandalismo, o quebra-quebra? Como tem acontecido em São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades nos últimos dias?

O professor Roberto Romano, em entrevista à CBN, sexta (14), disse que a questão é controversa e desperta paixões. Trata-se de um movimento de massa e esses movimentos têm um ponto crítico. Se esse ponto crítico é ultrapassado, o controle sofre, tanto do lado dos manifestantes, quando da polícia.

Talvez seja bom olhar o que aconteceu em outros países. Em 2011, Londres e outras grandes cidades do Reino Unido foram tomadas por hordas de jovens que começaram a incendiar prédios, invadir e saquear lojas e agredir transeuntes, numa fúria incontrolável. Prédios ardiam, enquanto a eficiente polícia de Londres foi colhida de surpresa. Não muito diferente do que ocorreu em Paris em 2009.

Em Londres, especulou-se que gangues estariam infiltradas entre os jovens. Por que esse vandalismo, a partir de um suposto assassinato por policiais de Mark Duggan, 29, negro? Entrevistas com envolvidos nos tumultos, conduzidas pelo jornal The Guardian, em parceria com a London School of Economics, revelaram que apenas 13% dos participantes pertenciam a gangues. As gangues, espertamente, se retraíram nesse período de tumultos.

“O que houve foi que a sociedade precisava de um bode expiatório, e culpar as gangues (como presumia o governo britânico) se encaixava no pânico, na política, na estratégia policial”, diz o estudo. A partir da pesquisa, o governo concluiu que “a única primordial razão pela qual a desordem se espalhou foi a percepção, confirmada pela TV e pelas mídias sociais, de que em algumas áreas a polícia havia perdido o controle” e as pessoas seguiram o chamado “efeito manada”.

Como não havia ninguém para impedir os saques, incêndios, todos embarcaram na onda dos protestos. Jovens de classe média alta não conseguiam explicar por que invadiam lojas de marca para roubar. Até uma medalista olímpica entrou na onda. E deu no que deu: 3.051 suspeitos detidos; 1.968 condenados e presos. Segundo o escritor Don Tapscott, especialista em inovação e que escreve sobre jovens e internet, “jovem sem trabalho e informado é estopim de distúrbios globais. Os jovens não estão felizes com o mundo atual”. E aqui?

São Paulo parece ter um pouco de tudo isso. Com o componente político. A líder do movimento “passe livre” admitiu ter “perdido o controle”. Se perdeu o controle, não é mais um movimento pela redução do preço da passagem ou “passe livre”, mas um grupo solto nas ruas, sem comando, e sem saber direito o que está reivindicando. Vale, então, qualquer coisa. Até mesmo quebrar vidraças, carros e brigar com policiais. E a eles se juntam gangues, viciados, desocupados e baderneiros de plantão, dispostos a desafiar o poder e apostar no "quanto pior, melhor". Alguns nem sabem por que estão ali. Outros nem usam transporte público.

Todos sabemos, como preconiza qualquer manual de gestão de crises, que uma crise sem comando não acaba bem. Ou melhor, não acaba. A tendência é exacerbar, como parece ser o caso de S. Paulo. O lema da mobilização é “tarifa zero”. Todos eles sabem, nós sabemos, ser um objetivo fictício. Meramente retórico e midiático.

A não ser para algumas classes sociais, como idosos, veteranos de guerra, menores, pessoas com necessidades especiais, em nenhum lugar do mundo os transportes públicos têm tarifa zero. Os manifestantes precisam ter uma bandeira, para justificar o movimento. No caso, significaria em S. Paulo subsidiar gastos de R$ 6 bilhões por ano, mais de 14% do orçamento. É uma bandeira por uma causa perdida.

Polícia e violência

O Estado tem a obrigação de manter a ordem. Como manter a ordem sem mandar a polícia para as ruas? A população ilhada, seja em carros ou ônibus, exige uma ação do Estado para desobstruir as ruas. As nossas polícias não têm treinamento, nem tradição de neutralizar grandes manifestações, como acontece, por exemplo, em Londres, Paris, Roma.  Mesmo lá, por vezes, a polícia ultrapassa os limites, até porque hoje está mais preocupada em procurar terroristas do que perseguir jovens em passeata. Daí, intervenções lamentáveis como a ocorrida com o brasileiro Jean Charles, assassinado (por engano) no metrô, pela polícia de Londres.

O sociólogo Roberto Romano admite também que, no caso de S. Paulo, o movimento fugiu do controle de ambos os lados. Os manifestantes, onde estudantes são apenas uma parte do público, aproveitam para extravasar ressentimentos com o custo de vida, o péssimo transporte público, os engarrafamentos, a corrupção e até mesmo contra o poder público. O governador de S. Paulo promete cobrar os prejuízos dos responsáveis. Pode ser um objetivo, mas difícil de se realizar. Sempre haverá um advogado pronto para defender e será muito difícil provar individualmente quem foi culpado da onda de vandalismo.

O Estado não pode admitir ações contrárias à Lei, à ética, à cidadania. É Roberto Romano, ainda, que diz: “o estado tem que ser firme para evitar o estouro da massa”. Depredar ônibus, estações de metrô, agências bancárias não condiz com protestos. A polícia recebeu ordem de reprimir e nos dois primeiros dias parece ter agido racionalmente. Conteve. Foi desafiada. Houve policiais feridos. No terceiro dia, o confronto inevitável. Com exageros de parte à parte. O excesso de força parece ser uma constante nessas repressões. Tanto pode ser na Praça Tahrir, no Cairo, como na praça Taksim, em Istambul.

Duas cenas marcam esses confrontos. Na de quarta à noite, o policial agredido e ferido apontando a arma e segurando um manifestante, sem atirar. Na quinta, o policial atirando gás de pimenta no rosto de um repórter ou policiais prendendo e agredindo pessoas que nada tinham a ver com a manifestação. O efeito colateral foi bater na imprensa. Nada justifica agredir jornalistas, se eles estiverem trabalhando, ainda que no meio do tumulto. A polícia de S. Paulo dá a impressão de ter perdido a paciência. Mas policial, apesar do stress e da pressão, até mesmo da cobrança da sociedade, não pode perder a paciência, muito menos a cabeça. "Minha opinião mudou após a violência da PM. A polícia mostrou-se incapaz de lidar com manifestações políticas duras, mas legítimas, numa democracia", disse o filósofo Renato Janine Ribeiro.

O que se discutia na sexta-feira era a violência da polícia e não mais o movimento e seu significado. Ou seja, uma crise da Prefeitura por causa da passagem, se transforma numa crise da polícia também. O comandante dos policiais argumentou que o recrudescimento dos confrontos deve-se ao não cumprimento, por parte dos manifestantes, do trajeto previamente combinado. Ora, se o movimento não tinha líder, nem comando, como garantir que houvesse ordem? Quanto mais a mídia dá publicidade às manifestações, por um "efeito manada", elas se tornam mais fortes, agravadas pela falta de liderança. Daí porque essa crise passou do ponto em que deveria ter sido resolvida.

O Ministério Público propõe suspender o reajuste. Seria um recuo das autoridades. Se o aumento tem justificativas econômicas, conforme garantem o governador e o prefeito, não há porque recuar. Protelar o reajuste é apenas dar um tempo, enquanto a Copa das Confederações transcorre, e empurrar o problema lá para julho. A Globo até que gostaria. Não parece razoável. É preciso, isso sim, conversar. Mas como conversar com um grupo que prefere ir para as ruas e quebrar vidraças do que sentar à mesa e discutir?

Os discursos vazios de sempre

Na hora do caos, surgem os "especialistas" de sempre ou profetas do Apocalipse. Autoridades enriquecem o festival de besteiras que assola a mídia. Do ministro da Justiça à secretária de Relações Institucionais. Do comandante da polícia de S. Paulo aos secretários de estado. Todos descobrem explicações acacianas para a crise, cada um procurando isentar o próprio lado. O Governador de S. Paulo diz que não compactua com o erro e irá apurar. Mas o centro de seu discurso é o vandalismo dos manifestantes. Outros, principalmente do governo federal, estão mais preocupados neste momento “com a mancha na imagem do país” do que em solucionar o problema.

Mas como a crise de São Paulo transita num fio muito tênue entre prefeitura da Capital, comandada pelo PT, e o estado de S. Paulo, nas mãos do PSDB, convém não carregar muito nas tintas. Porque pode ser um tiro no pé. Como foi no caso do Bolsa Família. A passeata por redução no preço da passagem virou um plebiscito retórico do que seria pior: o vandalismo dos manifestantes ou a violência da polícia. Só existem perdedores se ficarmos nessa disputa.

Ao fim e ao cabo, como acabar com essa crise, antes que surja um mártir, morto pela polícia? Negociando. Mas isso em termos bem objetivos e expurgando os interesses meramente políticos de pré-candidatos das futuras eleições. E sem demonizar os manifestantes. Algo difícil no caso. Deixar claro qual o limite legal e financeiro da Prefeitura para negociar. Seriam pré-condições para qualquer encontro. E só aceitar como interlocutores quem não tenha sido flagrado depredando patrimônio público ou agredindo policiais.

Além disso, na negociação, assegurar que todos os identificados em atos de vandalismo serão passíveis de inquérito, que poderá indiciá-los por dano ao patrimônio público e formação de quadrilha. Londres foi implacável com os arruaceiros, muitos presos até hoje. Certamente, a primeira reivindicação, nesses casos, sempre é a anistia. E, no caso da Polícia, rigor no inquérito para enquadrar (e as imagens estão aí) quem usou de violência desnecessária. Como a daquele policial interpelando bruscamente o jornalista da Carta Capital por que portava vinagre na mochila. Ou aqueles que atiraram balas de borracha ou gás, gratuitamente, em transeuntes e fotógrafos.

Ficar no blá-blá-blá, deixar tudo por isso mesmo, apenas posterga a crise. Autoridades precisam assumir o papel de mediadores para que 20 centavos não se transformem em símbolo de uma crise que não serve a ninguém. Para resolvê-la pacificamente, é preciso não deixar qualquer resquício de fumaça ou fagulha na fogueira. Caso contrário, daqui a um mês ou dois, as chamas podem crepitar novamente. Pelo que se viu em várias capitais, a juventude brasileira agora já não tem a ditadura para protestar; e nem o desemprego, como na Europa. Não está difícil achar outros motivos.

Foto: passeata no Rio de Janeiro - 17/06/13

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