Papa BentoA Igreja Católica irá se deparar nos próximos dias com o maior desafio do século XXI. Escolher um sucessor disposto a enfrentar as crises sofridas pela instituição, nos últimos anos. Além do avanço de outras religiões e cultos e o desinteresse pela religiosidade, que faz a Igreja perder fiéis, as denúncias de abuso sexual continuam a assombrar a reputação da mais antiga instituição religiosa.

Nesse clima, Bento XVI quebrou uma tradição de 600 anos, ao renunciar ao papado. O último Papa a renunciar, foi Gregório XII, em 1415 e, além deste, somente houve dois casos na história da Igreja. Durante séculos, os pontífices envelheciam, adoeciam e somente após a morte começava a sucessão. O ato surpreendente de Bento XVI é uma novidade na história da Igreja, que vai desafiar a força da instituição e pautar a sucessão, a primeira com um ex-Papa vivo, em séculos.

Segundo informações de pessoas da sua intimidade e do irmão, que reside na Alemanha, Bento XVI não poderia mais viajar e já sentia dificuldades para caminhar. Em entrevista concedida, em meados de 2012, a jornalistas alemães (ver artigo abaixo), o Papa já dava sinais de que se não se sentisse bem, poderia deixar o trabalho para o sucessor. Ele nunca negou o desconforto com o cargo que lhe foi imposto, quando o Colégio de Cardeais o escolheu. Ele preferia ter continuado como um teólogo e intelectual, que gostava de discutir a doutrina da fé e escrever. Nesse artigo, fica marcante a extrema solidão do poder de um Papa e, há oito meses, já se especulava sobre a sucessão de Bento XVI.

Como disseram os jornalistas alemães, "Bento XVI sempre viu a si mesmo como um educador, em vez de um pontífice governante. O professor-papa da pequena aldeia bávara de Marktl am Inn, sem dúvida, não ficará nos anais da história da Igreja como Bento, o Grande.

"Mas ele será lembrado como um líder de Igreja com um rosto humano, como alguém que se manteve fiel a si mesmo como um teólogo, e como alguém que virou as costas para o poder dentro de suas próprias quatro paredes. Em outras palavras, como um Papa com um “p” minúsculo."

Veja a íntegra do Comunicado do Papa, com a renúncia.

“Caríssimos Irmãos,

Convoquei-vos para este Consistório não só por causa das três canonizações, mas também para vos comunicar uma decisão de grande importância para a vida da Igreja. Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril de 2005, pelo que, a partir de 28 de Fevereiro de 2013, às 20,00 horas, a sede de Roma, a sede de São Pedro, ficará vacante e deverá ser convocado, por aqueles a quem tal compete, o Conclave para a eleição do novo Sumo Pontífice.

Caríssimos Irmãos, verdadeiramente de coração vos agradeço por todo o amor e a fadiga com que carregastes comigo o peso do meu ministério, e peço perdão por todos os meus defeitos. Agora confiemos a Santa Igreja à solicitude do seu Pastor Supremo, Nosso Senhor Jesus Cristo, e peçamos a Maria, sua Mãe Santíssima, que assista, com a sua bondade materna, os Padres Cardeais na eleição do novo Sumo Pontífice. Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus.”

Veja a linha do tempo do Pontificado de Bento XVI e os Papas mais velhos

Em julho de 2012, a revista alemã Der Spiegel publicou um denso artigo sobre os bastidores do poder no Vaticano, que nos ajudam a entender o que se passa e agora vai se evidenciar sobre a disputa de poder na mais alta hierarquia da Igreja. O artigo foi republicado neste site em 5 de julho de 2012.  

As crises da Igreja e os bastidores do Vaticano

A Igreja Católica vive várias crises. O dilema de se modernizar e acompanhar os avanços dos últimos anos, tanto nos costumes, quanto na tecnologia. A concorrência acirrada de outras religiões e apelos que reduzem o rebanho de católicos. As denúncias graves, dos últimos anos, com acusações de pedofilia. E o drama da autoridade papal, centrada numa figura que hoje não encontra paralelo na hierarquia de quase nenhum poder.

A Igreja Católica ainda administra o rescaldo das acusações de pedofilia que atingiram várias dioceses desde os anos 2000. A mais grave crise nesse particular estourou no início de 2010, quando religiosos e padres foram denunciados por abusos cometidos a ex-alunos na Irlanda, Estados Unidos, Alemanha, Áustria, Austrália, Espanha, Suíça e outros países, inclusive no Brasil. De início reticente, a hierarquia católica, liderada pelo próprio Papa Bento XVI, teve que fazer um mea culpa, assumindo inclusive o pagamento de ações milionárias na Justiça de vários países.

Mas a crise dos católicos não fica apenas nisso. Enfrenta o dilema da perda de fiéis para outras igrejas e cultos; o desencanto daqueles que se afastam da Igreja Católica, por não terem mais apelo, por discordarem dos caminhos tradicionais da Instituição e até pela não evolução de uma cultura milenar, nos últimos anos.

No Brasil, o Censo de 2010, pela primeira vez, registrou uma queda no número de católicos. Em todo o país, os católicos passaram de 73,6% da população em 2000, para 64,6% em 2010 - queda de 9%. Nos anos 60, eram mais de 94%. Ainda são maioria.

Por tudo isso, julgamos muito oportuno o artigo “A batalha final do Papa Bento XVI”, publicado na revista Der Spiegel, edição 24/2012, de 11/06/2012.

O artigo foi escrito por Fiona Ehlers, Alexandre Smoltczyk e Peter Wensierski. A primeira versão foi publicada em alemão, e traduzida para o inglês, no site da revista.

O denso artigo é um mergulho nos bastidores do papado de Bento XVI. Podemos até não concordar com muitas afirmações constantes na publicação, mas essa é uma constatação de um grupo de três jornalistas que, de uma forma ou outra, tiveram acesso privilegiado ao Vaticano e a fontes ligadas ao Pontífice. É um retrato da luta pelo poder na Igreja, mas ao mesmo tempo traz à tona o perfil de um Papa que, apesar da idade e da sisudez, talvez tivesse desejado ficar onde sempre esteve: nos bastidores, nos seus estudos e escritos teológicos.

Tanto para católicos, como não-católicos, vale a pena ler, para entender melhor o que está acontecendo hoje nos corredores do Vaticano, principalmente quanto às perspectivas da sucessão do idoso Papa Bento XVI.

O artigo que você vai ler apareceu originalmente em alemão, na edição 24/2012, 11/06/2012, da revista "DER SPIEGEL". O link para a versão em inglês está no fim da edição.

A Batalha Final do Papa Bento XVI

Por Fiona Ehlers, Alexander Smoltczyk and Peter Wensierski

O clima no Vaticano é apocalíptico. O Papa Bento XVI parece cansado, e mais incapaz e sem vontade de tomar as rédeas em meio a lutas ferozes e a um escândalo. Enquanto os controladores do Vaticano brigam por poder e especulam sobre seu sucessor, Joseph Ratzinger retirou-se para se concentrar em seu ainda ambíguo legado.

Finalmente, há clareza. A Santa Sé esclareceu as coisas e fez o documento acessível a todos: um folheto para checar se aparições da Virgem Maria são autênticas. Tudo será muito mais fácil a partir de agora. A Igreja Católica Romana deu um passo à frente.

Estas "notícias quentes" da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) revelam o tipo de questões com que o Vaticano se preocupa - e o tipo de mundo em que alguns lá vivem. É um mundo em que a investigação oficial da Igreja sobre aparições da Virgem Maria é cuidadosamente regulada, enquanto os cardeais na Cúria Romana, o aparato judicial e administrativo do Vaticano, exercem o poder com absolutamente nenhum controle e a correspondência privada do papa aparece nas gavetas de um mordomo.

É uma aparição completamente diferente da Virgem Maria que tem jogado o Vaticano e a Igreja Católica em uma nova crise, cujo fim e impacto só pode ser resumido: o aparecimento de uma fonte no coração da Igreja, uma conspiração contra o Papa e um vazamento com o nome-código "Maria".

Desde o fim de maio, o ex-mordomo do Papa, Paolo Gabriele, foi detido em uma cela de 35 metros quadrados no Vaticano, com uma janela, mas nenhuma TV. Usando o nome-código "Maria", ele supostamente contrabandeou faxes e cartas dos aposentos privados do Papa. Mas ainda não está claro quem lhe deu a ordem para fazer isso.

Mesmo com a prisão de Gabriele, o vazamento ainda não foi desvendado. Mais documentos foram liberados ao público semana passada, documentos destinados principalmente para prejudicar dois colaboradores mais próximos do Papa Bento XVI: o seu secretário particular, Georg Gänswein, e o Cardeal Secretário de Estado, Tarcisio Bertone, administrador do Vaticano. De acordo com um documento, "centenas" de outros arquivos secretos seriam publicados se Gänswein e Bertone não forem "expulsos do Vaticano." "Isso é chantagem", diz o especialista em Vaticano Marco Politi. "É como ameaçar guerra total".

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Uma casa em desordem

O medo está correndo solto na Cúria Romana, aonde os ânimos raramente estiveram tão miseráveis. É como se alguém tivesse cutucado uma colmeia com uma vara. Homens vestidos de púrpura estão correndo ao redor, freneticamente monitorando a correspondência. Ninguém confia em mais ninguém, e alguns até mesmo hesitam em se comunicar por telefone.

Tudo começou no amaldiçoado sétimo ano do pontificado de Bento XVI, com paralelos surpreendentes com a última parte do papado de João Paulo II. As mesmas queixas sobre uma liderança pobre e divisões internas estão sendo exibidas fora dos muros do Vaticano, enquanto o próprio Papa parece esgotado e já um tanto enfraquecido para exercer seu poder.

Joseph Ratzinger completou 85 anos em abril. Isso faz dele o mais antigo Papa em 109 anos, e um dos poucos Papas que exerceram o que o próprio Bento XVI tem chamado deste “enorme” encargo para uma idade tão avançada.

Claro, ele ainda está invejavelmente em forma, tanto mentalmente quanto fisicamente, especialmente em comparação com seu antecessor em seus últimos anos. Mas falar hoje tornou-se inequivocamente mais difícil para Bento XVI do que no início de seu papado, e é difícil deixar de perceber que seus movimentos tenham se tornado rígidos e cautelosos.

Ele recentemente disse a um visitante que seu velho piano dificilmente tem sido usado. Tocá-lo requer prática, acrescentou, mas ele não tem nenhum tempo para isso. Ele prefere continuar a trabalhar na última parte de sua série sobre Jesus, que ele quer terminar antes de morrer.

Um barco sem capitão

Nestes dias, não é difícil encontrar clérigos no Vaticano que estão dispostos a falar, desde que suas identidades permaneçam anônimas.

O monsenhor que caminha à noite para um restaurante perto da Piazza Santa Maria, no Bairro Trastevere de Roma, trabalhou com Ratzinger na Congregação para a Doutrina da Fé-CDF, por anos. Mas, mesmo antes de o garçom chegar com a água e o vinho, o monsenhor oferece seu veredicto sobre o papado de Ratzinger: "O Papa não exerce plenamente a sua função!" Na sua opinião, em vez de ter as coisas sob controle, eles o controlam.

O Papa não está interessado nos assuntos diários do Vaticano, diz o anônimo monsenhor. Ainda assim, este não é exatamente um fato inédito, já que seu antecessor também negligenciou a Cúria. Enquanto o papa polonês passou muito tempo viajando, o seu sucessor alemão é aparentemente mais feliz enquanto se debruça sobre livros e escreve discursos. "Ele simplesmente não assume os problemas com suas próprias mãos", diz o monsenhor. Em essência, ele acrescenta, o Papa enfrenta um poder diferente em Roma – desde que ele não tenha de assumir o comando.

Embora o Vaticano seja Católico, é também dois terços italiano. No final, diz o monsenhor, os funcionários do Vaticano e da administração não se importam quem, entre suas fileiras, irá conduzir a Igreja. Mesmo para alguém que vive lá há décadas, o monsenhor diz, "o Vaticano é um novelo de lã quase impossível de desembaraçar - nem mesmo por um Papa."

Quando João Paulo II morreu em abril de 2005, a Cúria estava em péssimo estado. Eventos e decisões pessoais tinham sido adiados durante seus últimos anos, quando ele esteve muitas vezes doente. O novo Papa era esperado para finalmente limpar as gavetas e dar à Cúria um novo começo.

Mas, na maior parte, essas reformas não se concretizaram. Os sacerdotes ainda mantêm todas as posições-chave, incluindo aquelas no Conselho para os Leigos e o Conselho para a Família. A única mulher em um cargo superior, a britânica Lesley-Anne Knight, foi expulsa do cargo de secretária-geral da agência de desenvolvimento católica Caritas Internationalis, em 2011, por ter se oposto abertamente à hierarquia da Igreja dominada por homens.

Fraturada e feroz

A "reforma da Cúria" é provavelmente uma contradição em termos. Seu modelo organizacional hierárquico, essencialmente medieval, é incompatível com uma gestão moderna. O Vaticano é um sistema anacrônico, embora surpreendentemente determinado, em que prevalecem os comandos e uma propensão absurda para o sigilo e a intriga. "A única coisa importante é a proximidade com o monarca", diz um membro do staff de um cardeal. Roma funciona como um tribunal absolutista, no qual as decisões são tomadas por pessoas sussurrando coisas nos ouvidos das outras e não por comitês. "Há muitas pessoas vaidosas aqui, pessoas em acirrada competição com os outros", acrescenta o funcionário.

Quem falou com quem e por quanto tempo? Sobre o que eles falam? Quem assiste à Missa cedo e com quem, e quem convida quem para jantar? Quem está “in” e quem está “out”? Quem pertence e quem não, e quem está caindo nas graças do poder e quem está caindo fora dele? "Este humor fomenta sentimentos de exclusão, discriminação, inveja, vingança e ressentimento", diz o monsenhor. E todas as coisas já apareceram nos documentos chamados Vatileaks.

O secretário do Papa, Gänswein, em particular, fez muitos inimigos. Como guardião do Papa, ele tem influência sobre a quem é concedido ou negado um favor do pontífice, bem como sobre eventos e assuntos que podem merecer sua atenção. Este poder pode provocar ciúme, medo e desprezo nos corredores do Palácio Apostólico, residência oficial do Papa. Para Gänswein, pareceu quase um milagre o Papa ser capaz de passar uma noite inteira relaxando e conversando com os clérigos alemães na embaixada do Vaticano, em Berlim, em setembro passado. Foi uma experiência que ele não poderia ter tido em Roma.

O Vaticano está se desintegrando em dezenas de grupos de interesse concorrentes. No passado, foram os jesuítas, os beneditinos, os franciscanos e outras ordens que competiam por respeito e influência na Corte do Vaticano. Mas sua influência diminuiu, e eles têm sido substituídos, agora, principalmente pelas chamadas "novas comunidades clericais" que trazem as grandes e animadas multidões, para missas celebradas pelo Papa: o Neocatecumenismo, os Legionários de Cristo e os tradicionalistas da Sociedade São Pio X (SSPX) e a Fraternidade Sacerdotal de São Pedro - para não mencionar a globalizada "máfia santa" da Opus Dei.

Todos eles têm seus agentes abertos e clandestinos em torno do Vaticano, e todos eles possuem bens imóveis e dirigem universidades, institutos e outros estabelecimentos de ensino, em Roma. Vários cardeais e bispos defendem os seus interesses no Vaticano, muitas vezes sem um mandato oficial ou reconhecido. No Vaticano, todos estão contra todos, e todos sentem que têm Deus ao seu lado.

Talvez Bento XVI simplesmente conheça tão bem o Vaticano para seriamente tentar reformá-lo. "Como Papa, este veterano insider da Cúria acabou por ter interesse praticamente zero em realmente conduzir a Cúria Romana", escreve John L. Allen, um biógrafo do Papa.

Parte 2: Os perdedores na Batalha da Reforma

O escândalo atual desdobrou-se contra este pano de fundo. As revelações sobre os documentos secretos do Vaticano - apelidada de "Vatileaks", por ninguém menos que o porta-voz papal Padre Federico Lombardi - surgiram pela primeira vez há mais de quatro meses. Eles sugerem um Vaticano atolado em campanhas de corrupção de assassinato moral, uma trama que parece não se limitar ao alegado ato de roubo de um mordomo.

A figura central é o arcebispo Carlo Maria Viganò, a quem o Papa instruiu, em julho de 2009, para limpar a administração do Vaticano. O superzeloso advogado impôs cortes em várias áreas, incluindo os contratos de construção, setor imobiliário e gestão de Jardins do Vaticano. Em uma carta a Bertone, ele escreveu que tinha transformado um déficit no orçamento do Vaticano de 7,8 milhões de € (US$ 9,8 milhões) em um superávit de 34,5 milhões de € (US$ 43,3 milhões) em um ano, pondo fim à rede dos velhos amigos que "sempre fechavam contratos com as mesmas empresas "- pelo dobro dos preços pagos habitualmente, fora do Vaticano. Viganò tornou-se impopular pela sua luta contra o desperdício e abuso de poder.

Ele foi despachado de seu cargo, após somente 27 meses e, desde outubro, ele é embaixador do Vaticano nos Estados Unidos, em Washington, longe do Vaticano. Ele entendeu sua transferência como uma punição. Em uma carta de protesto ao Papa, ele pintou um retrato contundente da Cúria: "O reino está fragmentado em vários pequenos estados feudais, com todos lutando contra si". As condições, ele escreveu, são "desastrosas" e, pior ainda, são "bem conhecidas" de toda a Cúria.

O escândalo Vatileaks também trouxe à tona as razões por trás da demissão de um outro alto funcionário. Ettore Gotti Tedeschi, diretor do banco do Vaticano até pouco antes de Pentecostes, foi aparentemente enxotado, porque ele estava tentando trazer mais transparência a uma instituição repleta de escândalos. Seu objetivo era fazer com que o banco - onde padrinhos da máfia, guardavam seu dinheiro, por questões de segurança -, fosse incluído pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) na "lista branca" de organizações supostamente limpas. Tedeschi queria que o Vaticano finalmente tornasse claras as transações que satisfizessem as normas internacionais de combate à lavagem de dinheiro. Ele falhou.

Observadores acreditam que o caso do banqueiro é o verdadeiro cerne do escândalo, uma luta de poder pelo controle das finanças do Vaticano. Isso provavelmente explica por que Tedeschi foi tão vigorosamente deposto. O Conselho de diretores do banco emitiu justificativas absurdas para sua expulsão, dizendo que Tedeschi, professor de ética empresarial, era imprevisível e tinha chamado a atenção para si mesmo com suas ausências.

Em qualquer caso, está claro que Tedeschi perdeu em uma luta contra Bertone. Aparentemente descontentou o segundo no comando do Papa que, em função de novas orientações, poderia fazer um corte nos ativos do Vaticano.

Uma Velha Guarda Ignorada

Seria demasiado simplista interpretar tudo isso como apenas um conflito entre reformadores e tradicionalistas. Na realidade, trata-se da esclerose da Igreja, e um problema que tem um nome: Bento XVI.

A velha guarda do Vaticano, composta por cardeais italianos e os seus apoiadores, acreditavam que tinham encontrado um Papa de transição em Ratzinger. Mas agora a transição está em seu oitavo ano, e a Cúria está mais ou menos onde ela estava, perto do fim da vida do Papa anterior (João Paulo II): Não há ninguém à vista para assumir com firmeza o leme.

Bento XVI se cerca de pessoas que ele conhece há longo tempo, e lhes dá um poder considerável. Quando ele nomeou Bertone para seu escritório principal, o Papa passou por cima da hierarquia habitual das “panelinhas”. Ele e Gänswein, conhecido em Roma como o "Adônis da Floresta Negra", por conta de suas origens do sudoeste alemão, tornaram-se demasiado poderosos e independentes, segundo muitos cardeais da Cúria. Bertone e Gänswein foram os principais alvos do ataque de codinome "Maria".

Cardeais de províncias da Itália notaram que seu acesso à Santa Sé foi se reduzindo. Apesar de Bertone ser italiano, ele prefere seus colegas membros da Ordem dos Salesianos, elevando-os para posições-chave e nomeando-os como cardeais. Além disso, Bertone, de 77 anos de idade, é visto como um gestor fraco e diplomata inábil. No verão de 2009, uma delegação de cardeais teria questionado o Papa, para substituí-lo.

Mas o chefe da administração do Vaticano dificilmente pode ser o único alvo dos ataques "Maria". A razão para isto é ser muito provável ele permanecer no cargo, por mais seis meses, em qualquer caso, para desobstruir a posição para um sucessor. Não, "Maria" tem como alvo alguém mais elevado do que Bertone.

Desconfortável na Função

A Igreja Católica tem um problema de liderança no centro da sua corte barroca. Os documentos vazados, em última análise, prejudicam o próprio Bento XVI, e o escândalo é também fundamentalmente prejudicial para o próprio papado. A cada dia mais de especulação sobre os verdadeiros autores intelectuais por trás da trama, há uma impressão crescente de um papado difícil e um papa enfraquecido que não está mais comandando as decisões.

Por um longo tempo, o próprio Ratzinger mal podia acreditar que ele, de repente, tinha se tornado o líder de todos os católicos. Mais de um mês após sua eleição, em 24 de maio de 2005, ele fez uma outra visita ao local, no Vaticano, onde tantas coisas tinham começado para ele: o seminário no Campo Santo Teutônico, uma ilha verde no apertado estado papal, diretamente adjacente à sacristia da Basílica de São Pedro.

Ele viveu aqui durante o esforço radical de modernização da Igreja, conhecido como (Concílio) Vaticano II (década de 60) e, em 1982, ele voltou a Roma, vindo de Munique, permanecendo "em uma sala com apenas as necessidades básicas em torno de mim para que eu pudesse fazer um novo começo."

Ratzinger permaneceu leal à comunidade do Seminário, até que ele foi eleito papa. Durante décadas, ele celebrou a missa lá às 7 horas da manhã toda quinta-feira, e muitas vezes ele fazia refeições com os alunos, na sala de jantar, teve discussões com eles e participava da festa de Natal na sala de lareira. Era um lugar onde ele podia se refugiar de seus deveres como chefe da Congregação da Doutrina da Fé, uma espécie de família adotiva.

Ele não foi mais ao Seminário,  desde sua última visita, no final de maio de 2005, que durou mais de uma hora. Na despedida, Ratzinger assinou o livro de visitas. Ele escreveu: "Bento XVI" e, em seguida, deixando um espaço pequeno, rabiscou "Papa". No começo, ele escreveu com um “p” minúsculo, mas depois ele mudou para uma letra maiúscula.

Nenhum de seus antecessores nunca tinha assinado nada parecido com isso - e Bento XVI nunca faria isso novamente. Era quase como se tivesse que dizer a si mesmo: Meu Deus, eu sou o Papa!

Ratzinger sentia-se desconfortável com o poder que ele tinha assumido, uma das razões pelas quais ele se recusou a fazer uma abrangente reforma do sistema. Ele preferiu colocar sua confiança em seus subordinados.

A Necessidade de Família

Bento XVI não precisa do Vaticano, ele precisa de uma pequena família. A família é sagrada para ele, e é algo que ele sempre buscou ao longo de sua vida. O único membro sobrevivente de sua família é seu irmão mais velho, Georg. Seu pai, Joseph, morreu em 1959 e sua mãe, Maria, em 1963. Sua irmã, Maria, dirigiu seus trabalhos domésticos por cerca de 30 anos, mesmo em Roma, até sua morte em 1991. Quando ela morreu, ele escreveu em suas memórias: "O mundo tornou-se um pouco mais vazio para mim."

Para Ratzinger, todas esses problemas continuam sem resolver. No Encontro Mundial das Famílias, realizada em Milão no início de junho, ele respondeu a perguntas sobre a família de uma forma improvisada e repentina. "Oi, Papa," uma menina de 7 anos disse para ele. "Eu sou Cat Tien. Eu venho do Vietnã. Eu realmente gostaria de saber algo sobre sua família e de quando você era pequeno como eu."

Bento, de 85 anos, respondeu: "Para dizer a verdade, se eu tentar imaginar um pouco como será o Paraíso, eu penso sempre no tempo da minha juventude, da minha infância. Neste contexto de confiança, de alegria, amor, nós éramos felizes, e eu acho que o Paraíso deve ser algo parecido com o que foi a minha juventude ".

Ratzinger tem repetidamente tentado promover este "ambiente de confiança", mas esse ambiente tem sido repetidamente prejudicado. Quando Ratzinger mudou-se para os aposentos do Papa em 2005, ele de repente teve que ir sem um confidente de longa data. Ingrid Stampa, a governanta que sucedeu a sua irmã, não foi autorizada a juntar-se a Ratzinger em seus novos aposentos. Ela havia caído em desgraça, no Vaticano, por ter uma vez apontado para a Praça de São Pedro, a partir da janela do apartamento do Papa, e acenado para a multidão – uma gafe imperdoável.

Em vez disso, quatro irmãs leigas, da associação Memores Domini - Loredana, Cristina, Manuela e Carmela - tornaram-se suas novas governantas. Elas cuidaram dele durante cinco anos, assistindo suas orações todas as manhãs, celebrando o Natal e os dias santos e fazendo as refeições com ele.

Então uma delas, Manuela Camagni, morreu em um acidente de trânsito em 2010. O Papa ficou abalado. Ele se ajoelhou diante de seu caixão, fez um elogio e falou dos "inesquecíveis momentos como família" que tinha desfrutado com ela.

Com a traição de seu mordomo, que tinha estado a seu lado o tempo todo, o pequeno mundo de Joseph Ratzinger foi novamente jogado fora dos eixos.

O indescritível "Efeito Bento”

Quando comparado com as expectativas, os resultados de sete anos de Bento XVI, como Papa, têm sido bastante modestos. O Papa alemão não será lembrado tanto por sua luta declarada de preservar a unidade da Igreja. Em vez disso, ele será lembrado como uma vítima das circunstâncias e de facções fragmentadas, concorrentes, como um Pontífice atormentado por escândalos, erros e gafes. Ele mesmo construiu muros de proteção, que pareciam ter sido usados há muito tempo. Seu papado consistiu de anos de seguidas desculpas e mal-entendidos supostos ou reais.

Ele irritou os Protestantes, declarando que outras denominações diferentes da sua própria, não são igrejas verdadeiras. Ele afastou os muçulmanos com um discurso inepto na cidade bávara de Regensburg. E ele insultou judeus,  por reinserir uma oração pela conversão dos judeus na liturgia de Sexta-feira Santa.

Ele também esnobou a Igreja por se congratular com os tradicionalistas da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, que rejeita as reformas do Vaticano II. As pendências atuais nas reformas da Igreja, que já tinham começado a se acumular sob o seu predecessor conservador, João Paulo II, só ficaram maiores com Bento XVI. O “Dia dos Católicos” realizado em maio, no sudoeste da cidade alemã de Mannheim, com seus 80.000 participantes, foi um último grito para a mudança na Igreja.

O fato de o Papa ser alemão não teve um efeito duradouro sobre os alemães. Quando ele foi eleito, a imprensa alemã falou de um "efeito Bento XVI," de como ter um Papa alemão poderia influenciar positivamente a conversão e as taxas de retenção (de católicos) na Alemanha. Mas, se alguma vez realmente existiu, esse efeito se dissipou rapidamente. Desde a eleição de Bento XVI, em 2005, o número de pessoas abandonando a Igreja Católica, na Alemanha, mais do que dobrou, e tem sido maior, mais recentemente, na antiga Arquidiocese de Ratzinger, de Munique e Freising. Apenas 30 por cento dos alemães são ainda católicos hoje.

A alegação, muitas vezes feita por católicos entusiasmados em talk shows alemães - que tudo isso é um problema alemão ou europeu e nada além de uvas verdes, e que a Igreja é mais bem sucedida em outros lugares - não é sequer verdadeira, nem mesmo na profundamente católica América Latina, onde o número de católicos tem caído acentuadamente. Os cristãos evangélicos, por outro lado, multiplicam-se lá como os pães e os peixes em Canaã.

Parte 3: Travado pelos “insiders” do Vaticano

Ratzinger só foi capaz de fazer alguma coisa durante estes sete anos, por ter certeza de que poderia ter pequenas fugas. Além de suas tarefas diárias, ele já escreveu livros e encíclicas sobre o amor cristão ("Deus Caritas Est") e sobre a esperança ("Spe Salvi").

Alguns de seus escritos se tornaram best-sellers, mesmo na irremediavelmente secularizada Alemanha. Na verdade, esse Papa conseguiu colocar o Vaticano de volta no radar do mundo secular. Suas encíclicas, suas reflexões sobre a razão e a fé, e sua crítica do relativismo de todos os valores têm sido acompanhadas de perto pela imprensa. Ele tem sido visto como um Papa que entende o espírito da época.

Na verdade, a falha do Papa em atender à altura algumas expectativas, muitas vezes, realmente beneficiou a Igreja. "O Cristianismo, Catolicismo não é uma coleção de proibições, é uma opção positiva", disse Bento XVI, antes de sua viagem à Baviera, em 2006. Embora ele se coloque por trás do dogma e da doutrina pura, ele tenta não alienar ninguém, mesmo que reconhecidamente não tenha sido sempre bem sucedido no que faz.

Até agora, o Papa parece quase tão doce quanto a Rainha da Inglaterra, durante suas aparições. Ele sabe como cativar uma multidão sem gestos espetaculares. Ele se encontrou com sobreviventes do Holocausto em Auschwitz, vítimas de abusos nos Estados Unidos e pessoas com AIDS nos Camarões.

Bento XVI entendeu melhor do que os outros qual é a real condição da Igreja - e quão longe do seu ideal está remover isto. Seu obstáculo sempre foi a Cúria. Talvez a verdadeira coisa, aprendida ao longo dos últimos sete anos, seja apenas quão impotente pode ser um Papa.

Procurando já por um Sucessor

O Papa só queria ser um " simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor", um "servo da verdade." Agora ele está diante da realidade de sua própria mortalidade. Por algum tempo, ele foi acometido por períodos de "profunda tristeza", diz uma fonte próxima a Bento XVI, embora, a fonte observe que não está claro se esta é apenas tristeza ou genuína depressão.

Ratzinger sobreviveu a dois acidentes vasculares cerebrais leves no início de 1990. Tanto seu pai, quanto sua irmã, morreram de AVC. O Papa toma aspirina como medicamento preventivo. Ele é atormentado pela artrose nos joelhos, especialmente o direito. Caminhar está ficando mais difícil para ele, e ele agora usa uma plataforma rolante, que ele utiliza ao entrar na Basílica de São Pedro, principalmente quando está vestindo roupas pesadas.

Ele não tem saído de férias nas montanhas desde 2010. Às vezes, faz pequenas caminhadas com o seu secretário, nos jardins do Vaticano, onde ele reza o rosário.

Na Cúria e nos bastidores dos palácios do Vaticano, os esforços já estão em andamento para procurar um sucessor. Os resultados possíveis de um conclave são analisados e os candidatos são discutidos, como foi feito há sete anos. Alguns dizem que o próximo Papa deve ser alguém como Pio XII, Papa entre 1939 e 1958, que era um previsível e calculista operador do poder e insider do Vaticano. Ou alguém como Paulo VI, o Papa de 1963 a 1978, que dava atenção aos interesses da Cúria.

O nome do cardeal Angelo Scola, o arcebispo de Milão, tem sido mencionado, como tem o de Leonardo Sandri, um cardeal argentino com raízes italianas. Outro possível candidato é o Cardeal da Cúria, Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura e um dos poucos insiders do Vaticano, perito em lidar com a mídia, a política e o público.

Os italianos, com 30 votos, ainda formam o maior bloco em um conclave. Alguns acreditam que, depois de mais de 33 anos de dominação estrangeira - primeiro por um polonês e depois por um alemão - é hora de eleger um Papa italiano. Afinal, os defensores da ideia argumentam, um cardeal italiano conhece melhor a Cúria Romana. Mas os “prospect” italianos tornaram-se fracos desde o Vatileaks, diz o especialista em Vaticano, Marco Politi. "Se o escândalo expôs uma coisa, é a típica bagunça italiana. Italianos não são mais vistos como papabile (capazes de se tornarem Papa). Eles se desacreditaram com a sua luta pelo poder".

Últimos Dias e Legados

O próprio Bento XVI sabe que não tem muito tempo. "O último segmento da minha vida está começando agora", disse aos convidados no aniversário, em abril.

Na verdade, seu planejamento dificilmente vai além de julho do próximo ano, quando ele vai participar do "Dia Mundial da Juventude" Católica, no Rio de Janeiro. Consertar a rixa com a FSSPX (Fraternidade Sacerdotal São Pio X)* estará no topo de sua agenda nas próximas semanas, além de admoestar grupos rivais para exercer respeito mútuo.

Com a disputa, que surgiu sobre a avaliação das reformas do Concílio Vaticano II, que começou há 50 anos, o Papa está agora experimentando um retorno ao seu próprio passado. Será que o pastor, que já teve uma mente liberal, e agora é conservador, vai encontrar forças para promover a reconciliação no final da sua vida? Para desbravar algum caminho do meio entre tradição e modernidade para o 1,2 bilhão de católicos do mundo?

"Stalin estava certo em dizer que o Papa não tem divisões e não pode emitir comandos", disse Bento XVI no livro-entrevista de 2010 "Luz do Mundo". "Nem ele tem um grande negócio em que todos os fiéis da Igreja são seus empregados ou seus subordinados. Nesse contexto, o Papa é, por um lado, um homem completamente impotente. Por outro lado, ele tem uma grande responsabilidade".

Bento XVI sempre viu a si mesmo como um educador, em vez de um pontífice governante. O professor-papa da pequena aldeia bávara de Marktl am Inn, sem dúvida, não ficará nos anais da história da Igreja como Bento, o Grande.

Mas ele será lembrado como um líder de Igreja com um rosto humano, como alguém que se manteve fiel a si mesmo como um teólogo, e como alguém que virou as costas para o poder dentro de suas próprias quatro paredes. Em outras palavras, como um Papa com um “p” minúsculo.

Traduzido do alemão por Christopher Sultan. Traduzido do inglês para o português por João Paulo Forni e João José Forni.

* Nota dos tradutores - FSSPX – Fraternidade Sacerdotal São Pio X – um grupo de religiosos que prega o tradicionalismo na Igreja, rompendo com a autoridade papal para manter as tradições da missa em latim e outros costumes. Os bispos e padres que romperam foram excomungados (expulsos dos sacramentos da Igreja, em 1988, por João Paulo II). Apesar de Bento XVI ter-se aproximado deles, existem restrições à participarem das celebrações.

A FSSPX permanece fora da comunhão eclesiástica, pois seus padres e bispos continuam suspensos a divinis, sendo portanto considerados oficialmente um grupo às margens da Igreja Católica Romana. Assim sendo, todas as ordenações e missas oferecidas pela FSSPX são ilícitas. Já os sacramentos da penitência (confissão), matrimônio e crisma (confirmação) são completamente nulos por dependerem da jurisdição e autoridade do bispo local. Fonte: WikiPedia

Veja também a íntegra deste artigo em inglês

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