argentino mortoAs cenas chocantes mostradas pela TV do assassinato de dois traficantes, por policiais, logo após a morte de uma menina de 13 anos*, por bala perdida, e o ataque ao jovem argentino** por quatro marginais escancaram uma realidade que a cada dia se aprofunda. Estamos perdendo os valores mais caros do ser humano: o respeito e o direito à vida, o autocontrole, a honestidade e até a ética.

Descartam-se dois traficantes, uma menina inocente e o jovem atleta argentino como se os deletássemos de um computador. E nós assistimos a reprodução, como se as cenas da tela se fundissem com a ficção da novela, pouco tempo depois. Impactados? Sim. Mas parece ser algo distante da confortável poltrona onde estamos sentados. Então, optamos pela inércia ante a violência, vamos dormir e esquecer. Para em seguida tudo recomeçar. E a tragédia anterior é apenas mais uma no cotidiano de uma cidade como o Rio.

Não bastasse a crise de ética que assola o país, sustentada pela corrupção endêmica em todos os quadrantes, da prefeitura aos frigoríficos, passando por uma construtora que monta esquema financeiro de R$ 3,3 bilhões para corromper políticos, lobistas e marqueteiros, atingimos, com as mortes mostradas ao vivo, o mais baixo nível da escala humana. Matar se torna tão banal, que ninguém mais se indigna.

Os governos perderam a capacidade de dar proteção ao cidadão, preocupados somente com querelas políticas que garantam a sobrevivência no cargo e a perpetuação no poder. Os fundamentos para o que os governos existam, numa democracia, por delegação de quem os escolheu, como administrador da vida em comum do cidadão e dos recursos oriundos dos impostos, com a obrigação de lhe dar proteção, condições de cuidar da saúde e se educar já não têm nenhuma utilidade. Como bem demonstra a pesquisa Edelman Barometer 2017, os governos vão ano a ano em franca decadência quanto à confiança e credibilidade. 62% dos entrevistados na pesquisa dizem que o “sistema” está falhando com elas. Em 75% dos 25 países pesquisados pela Edelman os governos têm índice de confiança negativo. Líderes são incapazes, não apenas de proteger, mas de criar condições para que a vida seja preservada, digna e vivida com menos risco. Desemprego, guerras, negócios excusos, falhas em garantir segurança e saúde, conluios com empresários são alguns dos pecados em série.

Caráter e educação

A violência empregada por quatro marginais, na saída de um bar no Rio de Janeiro, contra um jovem turista jogador de futebol de salão, não importa o motivo, choca pela torpeza e violência. A vítima foi agredida covardemente quando já tinha caído num tombo fatal. Que indivíduos são esses? Reflitamos em que momento eles se tornaram monstros? Porque não nasceram assim.

Quem foi o fiador dessa formação sem humanidade, sem respeito ao outro, em que a força bruta e braços sarados parecem agora representar a única credencial para resolver as disputas e aparecer em público? A geração “pitbull” parece dar um recado: “eu tenho a força!” E faço o que quiser. Os pais teriam falhado em algum momento, lá pelos sete ou oito anos de idade desses criminosos, quando o caráter e a personalidade se definiriam? Que papel os professores tiveram na “formação” – se é que houve – desses fascínoras? Ninguém foi capaz de detectar que eles enveredavam para a zona cinzenta do crime, apelando para a violência?

Ou eles se corromperam depois, com más companhias, na droga, no submundo do crime, tendo o estado falhado em detê-los, fechando um olho para pequenos delitos, como é comum no país da impunidade. Vale perguntar: como se distorce o caráter desse tipo de gente, para se tornar fascínora da pior espécie?

Que valores ainda restam

menina sepultadaO que essas cenas violentas num mesmo dia sinalizam para nós no Brasil? Que chegamos ao fundo do poço. Não há mais limites nem escrúpulos. O país se transforma, visto pelos olhos de um estrangeiro, num ícone de malfeitos, de que são exemplos a corrupção e a violência contra a pessoa, principalmente as minorias, mulheres, homossexuais, negros. Basta lembrar o que aconteceu recentemente nas prisões do país, quando assistimos a cenas mais apropriadas para a Idade Média, numa clara demonstração de que os governos fingem que controlam e não protegem nem quem está dentro da prisão.  

O desrespeito pela vida e a banalidade do crime são caudatários da corrupção. Amparados pela inoperância das políticas de segurança, omissão do Poder Público, lentidão da Justiça e incompetência dos políticos. Eleitos, preocupam-se somente em repartir o espólio dos cofres públicos. São os assaltantes engravatados, protegidos por seguranças, sem risco de serem mortos por balas perdidas. Lixem-se os pobres, que não pedem muito; têm três demandas básicas: saúde, educação e segurança. Pelo menos para não morrerem de bala perdida, poderem sair das zonas de conflito e ter uma vida em paz. O símbolo desse Brasil corrompido e deplorável é Sérgio Cabral, ex-governador do Rio, preso como o campeão dos desvios de verba no país. E respaldado pelo Tribunal de Contas do Estado. Não é coincidência o Rio ter sido protagonista desses três crimes, quase no mesmo dia.

Como explicar para um estrangeiro, pelo menos de países onde a segurança é levada a sério, que a polícia no Rio não tem coragem de subir em determinados morros, para dar proteção aos moradores, porque a região é controlada pelos traficantes? Por isso, outros atores, como os quatro assassinos e os dois policiais das cenas trazidas a público, se sentem emponderados para fazer justiça com as próprias mãos. Até porque não foi a primeira vez. Muito ao contrário. E nem será a última. Banalizou-se a violência. E até a morte, sem que nos causem mais espanto.

O que pensar, após assistirmos aquelas cenas terríveis, concluídas com os gritos de dor da mãe e do pai da menina assassinada, de quem “foi tirado um pedaço do coração”, como disseram? Que talvez nós todos sejamos um pouco culpados. Voltados para nossos umbigos, no conforto dos lares, protegidos por grades, muros e vigilantes talvez estejamos perdendo a capacidade de nos indignar. Ao assistirmos essa violência pelo “écran” da TV, acabamos confundindo ficção e realidade.

O país se dividiu nos últimos anos entre dois lados, numa dicotomia em que um deles chama o desafeto de “ladrão, corrupto” e o outro de “coxinha, golpista”. Nessa ladainha que já dura anos, brigando por um naco do que restou no navio Brasil, depois do naufrágio, abrimos a brecha para o surgimento desses criminosos, muitos oriundos da classe média. Nessa batalha, esquecemos do Brasil real. Fomos incompetentes para dar à Maria Eduarda um país, uma cidade, nem sequer uma escola, onde ela pudesse treinar sem levar três tiros fatais. (JJF)

*Maria Eduarda Alves da Conceição, 13 anos, morta em 30/03/17, com três tiros, quando participava de uma aula de educação física na Escola Daniel Piza, em Fazenda Botafogo, Acari, Rio de janeiro.

**Matias Sebástian Carena, de 28 anos, argentino, jogador de futsal, morto em 26/03/17, após agressões sofridas na frente de um bar, em Ipanema, no Rio de Janeiro.

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