Caixa crise do assedio

No fim de junho, reportagem do jornalista Rodrigo Rangel, do site Metrópoles, de Brasília, começou a desnudar um tipo de crise muito comum, nos tempos atuais, mas que, de certa forma, passa despercebida e oculta nas organizações, até que uma eventual denúncia ou a coragem das vítimas a exponha como escândalo na imprensa ou nas redes sociais. Estamos falando das crises por assédio sexual e moral. Como exemplos, temos o caso do famoso médium João de Deus, em Goiás, conhecido como “milagreiro”, que curava pacientes do Brasil e do exterior; também com o médico Roger Abdelmassi, famoso ginecologista, em São Paulo, preso e condenado a 278 anos de prisão por mais de 50 acusações de estupros contra 39 mulheres; e tantos outros casos, no Brasil e no exterior.

De certo modo, as crises por assédio ocorrem nas relações pessoais e profissionais das empresas e por vários motivos acabam abafadas, com a impunidade dos assediadores, geralmente chefes e executivos. A crise por assédio é silenciosa e dissimulada, afetando minorias vulneráveis, nas empresas, geralmente praticadas por pessoas que detêm o poder, até que alguém tenha coragem de denunciá-las. Em muitos casos, as pessoas vítimas de assédio não encontram canais adequados e apoio para a denúncia e recorrem a outros meios, como a imprensa, o Ministério Público ou outras formas de expor a situação.

É uma crise que sempre foi disfarçada; não tinha muita visibilidade até há pouco tempo. Mas, com o emponderamento das mulheres, movimentos de inclusão e cobranças cada vez mais rigorosas da sociedade, percebe-se que nos últimos anos essa crise saiu dos porões do ambiente empresarial, como mostram, por exemplo, as estatísticas do Institute for Crisis Management (ICM), dos Estados Unidos. O ICM divulga anualmente um relatório das principais crises corporativas do mundo. Esse relatório, publicado a cada ano, cataloga milhares de crises publicadas pelos meios de comunicação, por categorias. Em 2017, por exemplo, as crises por 'assédio sexual' representavam pouco menos de 1% de todas os eventos catalogados pelo ICM. Em 2018, eram 9,4% do total. Em 2019, antes da pandemia, o índice pulou para 16,4% das crises, segundo o ICM. Em 2020, representavam 4%, índice esse que foi reduzido, não porque os casos de assédio nas empresas diminuíram, mas porque a pandemia inflou outras categorias de crise e acabou impactando o índice total desse registro.

Esse crescimento proporcional das crises por assédio demonstra não apenas o aumento de casos, mas que as vítimas estão perdendo o medo de denunciar e as empresas o de enfrentá-las com mais transparência. Coincide também com a repercussão do movimento Me Too, nos Estados Unidos, que escancarou aquilo que existia, mas não era divulgado.

Onde a Caixa falhou

No Brasil, não é diferente. O caso ocorrido com o principal executivo da Caixa Econômica expôs, com toda a crueza, uma crise que existe, mas muitas vezes é abafada ou minimizada pelas organizações. E por que o principal executivo da Caixa, sempre fazendo questão de demonstrar que tinha pleno apoio do presidente da República, insinuando-se em viagens, "lives", inaugurações, demorou tanto tempo para ser denunciado? Porque as falhas foram em série. A começar pelos órgãos de controle interno que, provavelmente, não estavam preparados para receber esse tipo de denúncia, envolvendo a alta cúpula da empresa; ou foram lenientes em monitorar e levar esses processos para a frente, como agora denunciam funcionários da Caixa. Ainda mais porque havia uma perseguição sistemática da presidência e áulicos sobre pessoas que ousassem denunciar ou questionar as ordens ou, melhor dizendo, os desejos do “chefe”. Ao que tudo indica, instalou-se na empresa um clima de assédio moral, vigilância e repressão. Os atos de assédio, segundo apurou a reportagem do Metrópoles e outros veículos, posteriormente, ocorriam como uma prática de gestão do CEO da empresa Pedro Guimarães, atingindo várias mulheres e homens. E, pior. Com o beneplácito de outros executivos da empresa, conforme relatos das vítimas.

O Ministério Público passou a apurar as denúncias divulgadas amplamente pela mídia. Esse clima tóxico de assédios e pressões teria começado em 2019, quando a atual gestão tomou posse, e continuou ao longo do tempo, sem que os órgãos de controle da empresa ou externos tomassem qualquer iniciativa. Ninguém foi capaz de enfrentar o presidente da empresa e dar um basta nos abusos, que iam da humilhação pública de alguns gestores, até o assédio sexual explícito a funcionárias, conforme depoimentos amplamente divulgados. A Comissão de Ética da Presidência da República, segundo a revista Veja, recebeu uma denúncia de assédio contra Guimarães em 17 de março de 2020. Em janeiro último, sem dar resposta, resolveu arquivá-la.

Como é possível um CEO ter praticado assédio sexual e moral em vários funcionárias e funcionários, durante três anos, e ninguém na corporação ter tido a iniciativa de denunciar nos canais competentes, evitando o sofrimento das pessoas que foram constrangidas e ameaçadas pelo executivo, como deixam claro os vídeos vazados na imprensa. A arrogância e desprezo do CEO pelas pessoas, as ameaças e o linguajar chulo e vulgar demonstram que o titular da Caixa desprezava as mais elementares práticas de gestão exigidas de um líder. Ele usava a pressão do cargo para intimidar mulheres e homens, ameaçando-os ou reprimindo-os, quando era contrariado ou queria mostrar serviço. Na área pública, é um dos casos mais escandalosos de assédio explícito, sem que ninguém na empresa ou no governo tivesse feito alguma coisa para impedir o executivo de usar o cargo para fazer bullying com os empregados. Ao que tudo indica, não há registro, nos últimos anos, na área pública em Brasília, de fato semelhante ter ocorrido com tantas evidências e aparência de impunidade.

Por que a Caixa falhou em ter canais internos eficazes, onde os empregados, homens e mulheres, pudessem denunciar, sem medo, as violações, tentativas de agressão e ameaças, como aconteceram, durante anos? E como ainda ocorre em empresas pouco comprometidas, com uma política de recursos humanos centralizada, alheias à inclusão e à diversidade. Por que as funcionários e executivos da Caixa demoraram a denunciar, somente tendo coragem de expor os abusos agora, mesmo com o acusado no cargo, sem medo de represálias, como algumas funcionárias confessaram?

Não há dúvidas de que os fatos só aconteceram porque houve conivência de pessoas próximas ao executivo, a ponto de ignorarem que havia na empresa uma cultura tóxica de abusos, sob o respaldo, inclusive, de alguns membros da diretoria. O Ministério Público, a CGU e o TCU já anunciaram que vão investigar a conduta dos diretores da Caixa. Um pouco tarde, é verdade. Mas pode ser um sinal de que isso jamais poderá acontecer.

Como os membros do Conselho Diretor e do Conselho de Administração administravam esses fatos, que eram conhecidos na empresa? Colegas da diretoria fecharam o olho para os ataques do presidente da Caixa? Após a denúncia, o Conselho de Administração divulgou uma Nota, onde reitera que não pactua fatos semelhantes, mas a Nota não explica por que demorou tanto tempo para a instância maior da empresa ter só agora se pronunciado, após funcionárias denunciarem o que vinha ocorrendo dentro da empresa há muito tempo. E se essas funcionárias ouvidas pelo Metrópoles não tivessem denunciado? Até quando o titular iria continuar com os abusos, aproveitando-se de fazer parte do círculo próximo do presidente da República? O CA da Caixa anunciou dois dias depois da divulgação das denúncias que contratará consultoria externa para apurar todos os fatos relativos ao assédio.

“Dentro da Caixa, uma prática apontada como comum na atual gestão deu origem a um epíteto: “discos voadores”. Assim são chamadas as mulheres que, durante as viagens pelo país, despertam a atenção do presidente do banco a ponto de ele chamá-las para atuar em Brasília. Por vezes, diz uma das mulheres, funcionárias são promovidas hierarquicamente mesmo sem preencher os requisitos necessários e acabam transferidas para a sede, por conveniência de Guimarães”, segundo apurou Rodrigo Rangel, na reportagem.

"A Caixa repudia qualquer tipo de assédio e informa que recebeu, por meio de seu canal de denúncias, relato de casos desta natureza na instituição", começa a Nota divulgada pela Caixa, no dia 29 de junho. A manifestação é oposta ao pronunciamento enviado ao Metrópoles na terça-feira (28/06), quando o colunista Rodrigo Rangel revelou o caso. Na ocasião, o banco informou que não tinha conhecimento das denúncias apresentadas pelo veículo. Na nova nota, a Caixa justifica que os processos correm sob sigilo na Corregedoria e, por isso, não são de conhecimento de outras áreas.

Quem fiscaliza

Pode-se até se questionar se compete ao Conselho de Administração das estatais fiscalizar situações semelhantes, que, talvez, deveriam ficar por conta das áreas de Auditoria, Compliance, segurança e informações, da diretoria de Recursos Humanos ou diretamente do ministério a que a estatal estivesse ligada. O que houve na Caixa foi uma falha na governança da empresa, que permitiu a um executivo, por mais poderoso que fosse, conduzir a empresa como um feitor, transformando subordinados em submissos, com medo de o denunciarem. Atuação, sob qualquer aspecto, abominável.

O fato grave merece uma rigorosa apuração dos órgãos fiscalizadores, até porque um executivo que tem a coragem de humilhar os subordinados e violar o regimento da empresa, poderia também estar atropelando as boas práticas de gestão da autarquia. Não é apenas a conduta pessoal do executivo que deve ser investigada, mas todos os seus atos como CEO, desde a posse. Que o fato acontecido na Caixa sirva de alerta não apenas para as empresas públicas, mas para todas as organizações que ainda não têm mecanismos de controles internos que permitam os empregados, com liberdade e tranquilidade, denunciarem eventuais atos impróprios de quem quer que seja, incluindo gerentes, superintendentes e membros da diretoria.

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