O uso da IA – Inteligência Artificial na elaboração de trabalhos e pesquisas nas universidades é um tema que tem suscitado discussões e dúvidas no ambiente acadêmico e na gestão da educação. Ele coloca em xeque o modo de produção do material científico elaborado por alunos e professores, que pode ser produzido a partir de um robô, em questão de minutos. Como avaliar teses, dissertações ou projetos produzidos na era do ChatGPT? Como saber até onde o trabalho acadêmico tem o dedo do autor ou o clique do robô? O jornal britânico The Times, na edição de 24/05/25**, aborda esse tema extremamente controverso, que já está na pauta de muitas universidades e centros de pesquisa em todo o mundo. O artigo provoca reflexão e um debate que em algum momento todas as instituições de ensino deverão fazer, inclusive no Brasil. Destacamos os principais tópicos do artigo.
“Os alunos estão usando IA para colar e os professores estão tendo dificuldades para acompanhar. Se uma IA consegue fazer toda a pesquisa e a escrita, qual o sentido de um diploma? Era setembro de 2023 quando o advogado Rhys Palmer recebeu a primeira ligação de um estudante universitário em pânico, acusado de usar um chatbot* de inteligência artificial para colar em seus trabalhos. Foi a primeira de muitas. Menos de um ano antes, o ChatGPT da Open AI havia sido lançado e os alunos já o utilizavam para ajudar a resumir artigos de periódicos e livros. Mas também para escrever ensaios.”
Qual a reação nesse cenário?
"Desde a primeira ligação, pensei imediatamente que isso seria um grande problema", diz Palmer, de seu escritório na Robertsons Solicitors, em Cardiff, Reino Unido, onde se especializa em direito educacional. "Para aquele aluno em particular, a universidade havia usado a própria inteligência artificial para detectar o plágio. Eu vi as possíveis falhas nisso e previ que uma onda de alunos teria problemas semelhantes."
“À medida que o uso de chatbots se torna cada vez mais difundido, o que começou como uma série de problemas evoluiu para um profundo desafio para as universidades. Se um grande número de alunos usa chatbots para escrever, pesquisar, programar e pensar por eles, qual é o propósito da educação tradicional?”
Boa pergunta, que exigirá um preparo adicional dos docentes e pesquisadores.
Como o professor administra essa tecnologia?
“Desde aquela primeira chamada em 2023, Palmer conquistou um nicho ajudando alunos acusados de usar IA para colar em suas disciplinas ou provas remotas. Ele disse que a maioria dos alunos foi absolvida após apresentar provas de rascunhos de redação, notas de revisão e trabalhos anteriores”, conclui.
"A cola com IA é... uma fera por si só”, diz Palmer. “Muitas vezes, são os pais que ligam em nome de seus filhos. Muitas vezes, eles sentem que seus filhos não receberam a orientação ou o treinamento adequado sobre como poderiam ou não usar IA.” Em outras ocasiões, Palmer ajudou alunos que admitiram usar IA a evitar sanções, argumentando que as políticas de IA de sua universidade não eram claras ou que eles tinham problemas de saúde mental, como depressão ou ansiedade.”
“Eles vêm à mesa dizendo: ‘Eu errei" diz ele. “Em alguns casos, recebemos uma carta do clínico geral ou um relatório de especialista confirmando que o julgamento deles foi prejudicado.” ‘Isso foi muito bem elaborado’
O uso acadêmico do ChatGPT
“Alguns alunos relatam que o ChatGPT é agora o programa mais comum exibido nos laptops dos estudantes em bibliotecas universitárias. Para muitos, ele já é uma parte essencial da vida diária.” O autor do artigo cita um exemplo: “Gaspard Rouffin, de 19 anos, aluno do terceiro ano de história e alemão na Universidade de Oxford, usa-o diariamente para tudo, desde encontrar sugestões de livros até resumir artigos longos para decidir se vale a pena lê-los na íntegra. Para seus módulos de idiomas, o uso de IA é compreensivelmente mais controverso."Tive uma tutora no segundo ano, em uma aula de tradução [de alemão], e ela percebeu que muitas das traduções eram geradas por IA, então se recusou a corrigir qualquer tradução naquela semana e nos disse para nunca mais fazer isso."
Como os professores reagem?
“Outros professores foram menos vigilantes. Uma aluna do terceiro ano em Oxford se lembra de uma tutoria em que uma colega estava lendo uma redação que ela sentiu ser obviamente gerada por IA. “Eu soube instantaneamente”, diz ela. “Havia algo especial na sintaxe, na forma como era construída e na forma como ela a lia.” A resposta da tutora? “Eles disseram: ‘Nossa, essa foi uma introdução realmente ótima, muito bem elaborada e eu realmente gostei da precisão’. Eu fiquei ali sentado, pensando: ‘como vocês não conseguem ver que isso é um produto do ChatGPT?’. Acho que isso possivelmente ilustra uma lacuna de conhecimento sobre o assunto.”
43% dos alunos usam o Chat GPT. Como agir?
“O percentual dos universitários, principalmente, que já utilizam a IA no seu dia a dia impressiona. Uma pesquisa da empresa de acomodação estudantil Yugo revela que 43% dos estudantes universitários do Reino Unido usam IA para revisar trabalhos acadêmicos, 33% a utilizam para auxiliar na estrutura de redações e 31% para simplificar informações. Apenas 2% dos 2.255 estudantes afirmaram usá-la para colar em trabalhos acadêmicos.”
“No entanto, nem todos têm uma opinião positiva sobre o software. Claudia, de 20 anos, que cursa Saúde, Ambiente e Sociedades, às vezes se sente em desvantagem. Ela diz: "Às vezes, fico frustrada, como nos meus módulos de línguas modernas, quando sei que escrevi meu trabalho do zero e me esforcei muito para fazê-lo, e então ouço falar de outras pessoas que se saíram bem usando apenas o ChatGPT para escrevê-lo e, no final das contas, obtiveram uma nota muito melhor."
"Os alunos também temem as consequências se os chatbots os decepcionarem. "Tenho medo de errar e plagiar", diz Eva, de 20 anos, que estuda saúde e meio ambiente no University College London. Em vez disso, ela insere suas próprias notas de revisão no ChatGPT e pede que ele faça perguntas para verificar seus conhecimentos."
“Obviamente, é um pouco irritante quando você ouve: ‘Ah, bem, eu tirei essa nota’, diz ela. “E você pensa: ‘Bem, você usou o ChatGPT para tirar isso’. [Mas] se outros querem usar IA agora e não sabem o conteúdo do curso depois, o problema é deles.”
Como as universidades enfrentam o desafio?
Segundo as autoras, “As universidades estão, um tanto tardiamente, se esforçando para elaborar novos códigos de conduta e esclarecer como a IA pode ser usada, dependendo do curso, módulo e avaliação. As abordagens variam consideravelmente. Muitas universidades permitem o uso de IA para fins de pesquisa ou auxílio com ortografia e gramática, mas outras a proíbem completamente. As penalidades por violar as regras podem variar de advertências por escrito à expulsão.”
“As universidades estão na posição de tentar fechar a porta do estábulo depois que o cavalo já fugiu”, diz um professor assistente de uma universidade do Russell Group. “Nossa universidade está apenas agora reagindo à IA, definindo políticas como quais avaliações ela não pode ser usada. Há certos sinais reveladores de escrita robótica que o professor procura: "Se vejo um trabalho muito prolixo ou carregado de adjetivos, fico desconfiado".
“Os alunos vão precisar dessas habilidades”
O artigo destaca que “os riscos para os alunos — e para as universidades — são enormes. “As universidades enfrentam uma crise existencial”, segundo Anthony Seldon, ex-reitor da Universidade de Buckingham. “Mas, se os obstáculos puderem ser superados, isso também poderá ser uma oportunidade. A IA pode ser a melhor coisa que já aconteceu na educação, mas somente se superarmos as desvantagens, e a desvantagem mais imediata é a trapaça”, afirma. A IA generativa está evoluindo mais rápido do que o software usado para detectá-la. Ela pode ser personalizada de acordo com a voz do usuário, o que significa que até mesmo um professor muito bom terá dificuldade em detectá-la. A grande maioria dos alunos é honesta, mas é muito difícil, se você sabe que outras pessoas estão trapaceando, não fazer o mesmo.”
O que as universidades podem fazer?
“Alguns acadêmicos sugeriram provas supervisionadas e trabalhos manuscritos como solução. Seldon não acredita que a resposta esteja em trocar as aulas por mais exames, porque estes não ensinam habilidades de vida suficientemente abrangentes. Em vez disso, ele argumenta que deveria haver mais foco em seminários onde os alunos sejam incentivados a “pensar de forma crítica e colaborativa”.
O professor Paul Bradshaw, professor titular de jornalismo de dados na Birmingham City University, afirma que a IA é um “problema enorme” para os professores que tradicionalmente baseiam suas avaliações na capacidade dos alunos de absorver texto e, em seguida, fornecer seus próprios insights. No entanto, ele acredita que é crucial que as universidades ensinem os alunos a usar a IA com um olhar crítico, aprendendo sobre seus benefícios e deficiências, em vez de proibir seu uso.
“Há um grupo de alunos que não aceita nem um pouco a IA", diz ele.. “O problema para eles é que entrarão em um mercado de trabalho onde precisarão dessas habilidades. Depois, há outro grupo que a usa, mas não conta a ninguém e não sabe realmente o que está fazendo.”
“Acho que estamos em uma situação horrível, em que precisamos nos adaptar rapidamente, e acredito que veremos muitos erros cometidos, tanto por alunos quanto por professores e empresas de tecnologia. A IA tem o potencial de promover o aprendizado ou destrui-lo.” Conclui.
*Chatbot é um software que simula conversas humanas, utilizando Inteligência Artificial (IA) para interagir com usuários e responder perguntas em tempo real.
** Autoras: Louise Eccles, editora de educação | Lottie Hayton, repórter de notícias.
Fotos: Universidade de Harvard; Universidade de Yale.
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