Estado de criseDesde 2008, temos a sensação de que o mundo vive numa instabilidade constante, parecendo estar condenado a viver em crise permanente. Ou foi a partir de setembro de 2001, quando tudo começou? Mais do que um "estado de crise", o que parece ocorrer hoje é o divórcio entre poder e política, abalando as instituições e levando o Estado a perder a capacidade de responder às demandas da população. Há um inconformismo generalizado. Para os estudiosos, "sinal de mudança profunda que envolve o sistema social e econômico e que terá efeitos de longa duração".

Vivemos um momento de grande instabilidade nas relações internacionais, mas que vai além de movimentos sociais de contestação ou guerras, muitas sustentadas por ativismo religioso, interesse econômico ou disputas políticas e ideológicas. A crise enfrentada pelas sociedades ocidentais decorre de uma série de transformações mais profundas sobre as quais cientistas sociais têm se debruçado para tentar ententer e apontar caminhos.

O tema Estado de Crise”* é abordado no livro do mesmo nome, lançado este ano, assinado por ninguém menos do que Zygmunt Bauman, um dos maiores pensadores do mundo atual, filósofo polonês que vive em Londres e autor de diversos livros impactantes; e por Carlo Bordoni, sociólogo, jornalista e escritor italiano, também com diversos livros publicados. “O divórcio entre poder e política produz um tipo novo de paralisia. Ele abala as instituições políticas necessárias para resolver a crise e mina a crença dos cidadãos de que os governos possam cumprir suas promessas. Portanto, o que está em curso é uma crise da democracia representativa e também da soberania do Estado”, dizem os autores na apresentação do livro.

A primeira parte da obra aborda exatamente a "Crise de Estado”. Mas a leitura não dá todas as respostas; os dois autores nos deixam ainda com mais dúvidas, porque a intenção, provavelmente, é provocar o tema que está longe de ter uma solução. Até mesmo porque nem eles ousam dar as respostas. Eles começam estabelecendo uma grande diferença entre a crise atual e a de 1929, embora muitos pensadores continuem as equiparando. “A crise em curso é financeira, ao passo que a crise de 1929 foi industrial.”

“A crise atual é diferente. Os países afetados pela crise estão endividados demais e não têm vigor, talvez nem sequer instrumentos, para investir. Tudo o que podem fazer são cortes aleatórios, os quais têm o efeito de exacerbar a recessão, em vez de mitigar seu impacto sobre os cidadãos”, diz Carlos Bordoni.

Bordoni aproveita para recuperar o conceito de crise. Segundo ele, ‘a noção de “crise” transmite a imagem de um momento de transição de uma condição anterior para uma nova – de uma transição que se presta necessariamente ao crescimento, como prelúdio de uma melhoria para um status diferente, um passo adiante decisivo.” Crise, da palavra grega "κρίσις", “juízo”, “resultado de um juízo”, “ponto crítico”, “seleção”, “decisão”, mas também “contenda” ou “disputa”...

“Com se pode ver, “crise”, em seu sentido próprio, expressa algo positivo, criativo e otimista, pois envolve mudança e pode ser um renascimento após uma ruptura. Indica separação, com certeza, mas também escolha, decisões e, por conseguinte, a oportunidade de expressar uma opinião. Num contexto mais amplo, a noção adquire sentido de maturação de uma nova experiência, a qual leva a um ponto de não retorno (tanto no âmbito pessoal quanto no histórico-social).”

Carlo Bordoni explica que a noção de “crise” ficou muito associada ao setor econômico para indicar uma condição complexa e contraditória, mas o sentido lato da palavra extrapola a área econômica. Esse pano de fundo do autor é para introduzir a discussão mais próxima da política e da economia que ele desenvolve na primeira parte do livro.

“A inflação é a pior consequência de qualquer crise econômica porque engole as economias de toda a vida e reduz as pessoas à fome num período muito curto”, diz Bordoni. O autor parece ter, sem querer, definido o que aconteceu no Brasil nos últimos anos, o que ele chama de uma espécie de “síndrome de Titanic”, “caracterizada por uma euforia contagiosa enquanto o país está afundando”. Nada tão perfeito para explicar o Brasil de ontem e de hoje.

Bordoni diz que “uma característica desta crise é sua duração. (...) Agora, as crises – tão vagas e generalizadas por envolverem uma parte tão grande do planeta – levam éons para reverter a direção. Elas progridem muito lentamente, em contraste com a velocidade na qual todas as demais atividades humanas na realidade contemporânea de fato se movem. Todo e qualquer prognóstico de solução é continuamente atualizado e, em seguida, adiado para outra data. Parece que nunca vai acabar”.

Crise gera incerteza

Já para Zigmunt Bauman, “Falando de crise de qualquer natureza que seja, nós transmitimos em primeiro lugar o sentimento de incerteza, da nossa ignorância da direção que as questões estão prestes a tomar, e, secundariamente, do ímpeto de intervir: de escolher as medidas certas e decidir aplicá-las com presteza.”

Por que o Estado – e os governos -  perderam a capacidade de resolver as crises? Desde os anos 1970, com desemprego em alta, inflação incontrolável e a incapacidade dos Estados cumprirem suas promessas, aos poucos a situação ficou incontrolável, resultando, segundo Bauman, que “a fé e a confiança na potência do Estado começaram a se erodir”.

Peter Druker “declarou – lembra Bauman - que as pessoas precisam, devem (e em breve terão de) abandonar as esperanças de salvação “vindas de cima” – do Estado ou da sociedade – e o número de ouvidos ansiosos por absorver essa mensagem cresceu em ritmo acelerado.”

“Na percepção popular, ajudada e encorajada pelo coro de uma parcela crescente do público instruído e formador de opinião, o Estado foi rebaixado da posição de motor mais poderoso do bem-estar universal àquela de obstáculo mais odioso, pérfido e prejudicial.”

Bauman é cáustico e cético na avaliação no cenário atual: “Levou vinte e tantos anos para descobrirmos o que alimentava o milagre consumista: a descoberta, pelos bancos e pelas empresas emissoras de cartão de crédito, de uma vasta terra virgem a ser explorada – terra esta povoada por milhões de pessoas doutrinadas nos preceitos de uma ‘cultura da caderneta de poupança’ e ainda escravas do mandamento puritano de resistir à tentação de gastar dinheiro que não foi ganho pelo trabalho.”

O autor parece não ser muito otimista com o futuro. “A crise é um momento de decidir que procedimento adotar, mas o arsenal de experiências humanas parece não ter nenhuma estratégia confiável para se escolher.”

“Em sua condição presente, o Estado não dispõe de meios e recursos para realizar as tarefas que exigem a supervisão e controle efetivos dos mercados, para não falar de sua regulação e administração”.

Mais adiante é Carlo Bordoni que diz: “O Estado em crise, em vez de ser provedor e garantidor do bem-público, tornou-se “um parasita” da população, preocupado apenas com a própria sobrevivência, exigindo cada vez mais e dando cada menos em troca.”

Da leitura, pelo menos da primeira parte do livro, saímos também bastante céticos quanto à capacidade de os líderes atuais encontrarem uma saída para a crise atual que atinge o mundo capitalista, não interessa o regime político ou a região em que estejam. Eles advertem que a crise na qual estamos mergulhados não é passageira. “Ela veio para ficar”.

“Estado de Crise” é uma análise profunda, imprescindível e instigante do momento que vivemos, com a erudição e o estofo de um amplo conhecimento da História desses dois pensadores. Eles recuperam o conceito de Estado e nação, fazendo uma imersão ainda que rápida, mas elucidativa de vários teóricos que estudam o tema. Embora os problemas tenham sido exacerbados pelo colapso financeiro de 2008, os autores argumentam que a crise enfrentada pelas sociedades ocidentais, principalmente, está enraizada numa série de transformações muito mais profunda, que começa com o desmoronamento dos valores estabelecidos pelo iluminismo e produz efeitos de longa duração.

O livro ainda se completa com dois outros capítulos: Modernidade em crise e Democracia em crise.

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"Estamos num estado de interregno. Vivemos na modernidade líquida" - Entrevista de Zygmunt Bauman ao programa "Milênio", da Globo News.

* Estado de Crise, Bauman, Zygmunt; Bordoni, Carlo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

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