Entrevista coletiva TrumpO jornal britânico “The Guardian” publicou artigo na última sexta-feira, 13, Trump’s rhetoric: a triumph of inarticulacy, com uma cáustica análise da comunicação errática, provocadora e arrogante do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, além das manifestações isoladas que tem divulgado por meio das redes sociais.

O artigo do jornalista Sam Leith, numa análise bastante crítica, desconstrói o discurso de Trump, o presidente que assume com a menor taxa de aprovação em quatro décadas, entre os mandatários dos EUA: 40%. Obama assumiu com 79%; Bush, com 62%. Infere-se, a partir dessa análise, que Trump terá muita dificuldade de cativar o coração dos americanos, como Obama conseguiu, fruto, certamente, do poder de retórica, do carisma e da elegância da comunicação do primeiro presidente negro dos EUA. O termo "inarticulacy" para classificar o discurso de Trump, nem tem equivalente em português, mas seria literamente "inarticulação": incapacidade de expressar sentimentos ou ideias claramente, ou expressas numa forma que é difícil de entender.

A retórica de Trump: o triunfo da inarticulação

Sam Leith*

                 “Seu discurso e gramática são desastrosos, ele contradiz a si mesmo, fala com incoerência, nunca se comunica digna ou reconhecidamente presidenciável - mas nada disso lhe faz mal. Na verdade, parece ajudar."

“É tudo uma notícia falsa (fake news), é falso - não aconteceu ... Acho que temos um dos grandes gabinetes jamais reunido ... Não seja rude. Não seja rude. Não. Seja. Rude... Eu não vou lhe fazer uma pergunta. Eu não vou lhe fazer uma pergunta. Você é uma notícia falsa (You’re fake news)". Em sua primeira entrevista coletiva, o presidente eleito Trump foi impetuoso, grosseiro e fora do tom. Falava menos como um presidente do que como uma estrela mal-humorada de reality show da TV – na linha do Lord of the Flies (O Senhor das Moscas)(1).

“A oratória pública tem estado no centro do projeto americano desde a época de seus fundadores. Os redatores da Constituição se atribuíam pseudônimos clássicos em sua correspondência, e conscientemente têm modelado sua nova nação sobre a república romana. Cada presidência é pontuada com discursos escolhidos, e as históricas transmissões de cargo (Inauguration, em inglês) foram marcadas por discursos históricos. Em Donald Trump, porém, temos um comunicador presidencial que é bastante diferente dos outros.

“Então o que isso indica para a face pública de sua administração? Como funciona sua linguagem? Em um nível puramente linguístico, três coisas parecem impressionantes.

"1) Trump usa um vocabulário profissional muito pequeno. Isso não parece ser uma estratégia consciente, embora ela funcione tão bem como se tivesse sido. Muito foi feito durante o período das primárias, quando o nível de leitura dos algoritmos (não confiáveis, apesar de serem) classificou seus discursos equivalentes aos do nível da quarta série, ou seja, a compreensão média de uma criança de nove anos de idade.

"2) Sua sintaxe, ortografia e pontuação são - em termos convencionais - uma catástrofe. Em seus tweets (inserções na rede social Twitter, muita usada por Trump) , ele é propenso a frases repentinas, com maiúsculas exageradas, incríveis erros de ortografia e troca de palavras (malapropisms), aspas utilizadas para ênfase e exclamações sem verbo. Ao falar, ele é propenso a anacolutos(2) - frases cuja gramática se desmorona - e repetição reflexiva.

"3) Os destaques de sua retórica vêm carregados de adjetivos e advérbios vazios. As coisas são "grandes", "maravilhosas", "incríveis", "as melhores", ou são "tortuosas", "falsas", "injustas", "fracassadas". Ele pulveriza intensificadores liberalmente: "um homem muito, muito, muito incrível, um grande e grande desenvolvedor".

"Todas essas qualidades, embora elas convidem mais à gozação, têm algo a dizer para eles como estratégias comunicativas. Linguagem simples atinge o público mais amplo possível e tende (insira uma piada triste aqui) a conotar honestidade. O estilo simples - palavras curtas, sintaxe simples e uma abordagem popular - tem sido vencedor para os presidentes. Lembram-se de George W. Bush, fingindo ser um cowboy doméstico do Texas? Lembram-se de Ronald Reagan tocando "o Gipper"? Lembram Bill Clinton representando o “good ol’boy”?(3) As pessoas desconfiam dos locutores “ensaboados” e a articulação vistosa de Obama nem sempre contava a seu favor.

"Estruturas gramaticais simples (ou ausentes) deixam o público sem nada tão taxativo como, por exemplo, uma sequência de pensamento: em lugar disso, uma colagem aleatória de termos emotivos, repetida para ênfase. Você sai de um discurso Trump com um sentimento, não um argumento.

"O estilo simples de Trump é invariável, entretanto, e isso é uma parte fundamental de seu ethos, ou como ele se projeta para seu público. A maioria de seus antecessores foi capaz de comandar uma série de registros. A presidência - digna, elevada - estava disponível para George W. Bush, mesmo que ele tenha lutado com sua sintaxe (uma luta que, como eu sugeri com Trump, não necessariamente possa prejudicá-lo). Foi abundante em Obama. E sustentava até a folia de Reagan.

“De fato, a habilidade de deslocar o registro de meio discurso - para dizer algo que soe histórico - mas para depois humanizá-lo com uma piada confidencial, uma menção de "gente" ou uma anedota pessoal auto-provocadora - tem sido uma habilidade presidencial básica. Lincoln certamente tinha. E mesmo no ataque, os antecessores de Trump nunca pareciam petulantes. Trabalhavam para transmitir o sentimento de gravidade ou um senso de comando tão absoluto que o desprezo era expresso como diversão. Pense no golpe mortal de Obama em John McCain (na campanha de 2008) - "Eu não acredito que o Senador McCain não se importe com o que está  acontecendo nas vidas dos americanos; eu só acho que ele não sabe " (Obama); Ou Reagan sorrindo irônico para Jimmy Carter (candidato a reeleição, em 1980, quando perdeu.), "lá vai você outra vez ..."

"Em Trump, há uma nota de vaidade ferida, e de despeito - "Meryl Streep, uma das atrizes mais bem avaliadas em Hollywood" (4) - que você luta para encontrar na história presidencial recente, exceto nas conversas privadas de Nixon. Trump simplesmente não evoca uma fala presidencial, nunca. Ele não tem registros diferentes para ocasiões diferentes: ele sempre parece falastrão, vingativo, desrespeitoso e ingênuo.

"Para muitos de nós, isso parece uma falha. Mas para alguns, podemos até admitir que é uma força de venda: ele não fala como um presidente normal, e é por isso que as pessoas gostam dele. Só há um Donald Trump. O que você vê, é o que você recebe. Isso pode ser visto como uma espécie de autenticidade.

"Um ponto a ser destacado: onde a linguagem de Trump difere mais profundamente daquela de qualquer de seus predecessores está em sua habilidade de forma conclusiva e sem risco de se contradizer. Estou dizendo isso para não chocalhar minhas pérolas em como horrível ele é, mas para admirar como isso funciona na retórica.

"A maioria dos políticos é boa em cometer equívocos. Eles são "econômicos com a verdade"; eles "falam erradamente"; In extremis, como Bill Clinton, eles podem tergiversar sobre "qual o significado de 'é' é". Mas eles não gostam de dizer algo que é inequivocamente, passível de ser confrontado, em desacordo com a verdade de seu comportamento ou com suas declarações anteriores.

“Isso ocorre porque, em regra, a acusação mais efetivamente prejudicial contra um político tem sido a desonestidade - ou seu  primo mais próximo, a hipocrisia. A mídia pode dizer que você está errado ou mesmo que você é o mal. Mas esses ataques não grudam você na parede. Podem ser atribuídos à oposição ideológica ou a diferentes interpretações de informações. Se você disse X e você fez Y, ou você disse X e eles provam que você sabia que Y era o caso, você está afundado. Você se condenou em seus próprios termos.

“Esta regra mostra todos os sinais de ter sido suspensa para o presidente eleito Trump. Sim, muitas vezes ele é vago. Mas quando ele diz coisas que são concretas, ele as diz diretamente: eu nunca apoiei a guerra no Iraque; Alicia Machado fez uma fita de sexo; Eu vi milhares de muçulmanos torcer pelo 11 de setembro; foi Hillary Clinton que começou os rumores sobre a certidão de nascimento de Obama, mas Donald Trump "os terminou", e assim por diante. Muitas vezes essas coisas podem ser comprovadamente falsas, ou contradizer algo que ele disse anteriormente. Mas isso parece não lhe fazer nenhum mal como um todo.(5)

“Eu gostaria de saber tanto, eu imagino, quanto você. Minha intuição é que temos um eleitorado tão acostumado a políticos agirem de forma equivocada, e tão enfurecidos por isso, que o salto que Trump comete de não parecer como aquilo, é muito maior do que o demérito que ele incorre por ser uma cortina de fumaça em trajes de mentiroso. Em outras palavras, preferimos ter um mentiroso declarado, do que um político convencional.

"Vamos ver como isso funciona.”

*Sam Leith, jornalista britânico e escritor; foi editor e colabora com vários jornais do Reino Unido; autor do livro “You Talkin’To Me?: Rhetoric from Aristotle to Obama" (Profile Books).

Tradução: JJF

(1) Lord of the Flies - O Senhor das Moscas  é um livro de alegoria escrito por William Golding, vencedor do Prêmio Nobel em 1983. Foi publicado em 1954. Também foi adaptado para o cinema duas vezes.

(2) Anacoluto: é uma figura de linguagem que configura uma quebra da estrutura sintática de uma frase.

(3) Good ol’d boy – expressão para um homem que encarna a boa comunhão não sofisticada e, às vezes, a sociabilidade barulhenta considerada típica dos homens brancos de pequenas cidades e áreas rurais do Sul.

(4) A afirmação de Trump, logo após tomar conhecimento das palavras fortes e irônicas da atriz Meryl Streep, sobre o comportamento do candidato durante a campanha, sem se referir a ele, na cerimônia de premiação do Globo de Ouro, no início do ano.

(5) Na semana passada, diante das pesquisas que o apontam como o presidente que toma posse com uma taxa de aprovação mais baixa da história recente, ele reagiu nas redes sociais: the same people who did the phony election polls, and were so wrong, we are now doing approval rating polls. They are rigged just like before.”  ("As mesmas pessoas que fizeram as falsas pesquisas eleitorais e estavam tão erradas, agora estamos fazendo pesquisas de opinião. Eles são manipulados como antes.")

Outros artigos sobre o tema

Trump’s rhetoric: a triumph of inarticulacy

What Donald Trump will have to accept: without journalism, there is no America

Entrevista de Donald Trump ao jornal alemão Bild - Transcrição completa

Entrevista ao jornal The New York Times - 26 nov 2016 - Transcrição completa

Meryl Streep called out Donald Trump at the Golden Globes. He responded by calling her ‘over-rated.’

 

 

 

 

Redes Sociais

 redetwiter redeface redeflick  redelinkedin

banner livro rodape herodoto