jornais boa foto um*Francisco Viana

Os jornais contribuíram para a proclamação da Independência, para a definição da estrutura política e social; para a abdicação de d. Pedro I e seu retorno a Portugal; para a consolidação da Regência; para minar a Monarquia e instaurar a República; para acelerar a queda da Repúblida Velha; para derrubar Getúlio Vargas em 45 e para o seu suicídio em 1954; para o desgaste do governo Goulart e para a implantação de uma ditadura militar – papel de que se arrependeram tardiamente. (Matías Molina, História dos jornais no Brasil, p. 22).

O que é simples e aberto não tem truques. (Shakespeare, Júlio César, II, 20).

Em poucas linhas, Molina define a influência dos jornais, que no século 21 voltará em termos mais amplos, na forma do conjunto da mídia, na vida brasileira: “Eles foram, durante um século e meio, o principal meio de comunicação e de formação da opinião pública, e praticamente os únicos. Eram o fórum de debates do país, a ágora onde se discutiam os principais temas. Sua influência ia muito além das magras tiragens. O Brasil era um país de rica tradição oral, e no século XIX era comum nas cidades do interior as pessoas se reunirem em lugares públicos para ouvir a leitura das notícias e dos folhetins que chegavam pelo correio, que depois seriam comentados nas praças, nas ruas e nas tabernas.” (Matías Molina, op. cit. p. 22). De imediato, como se vê, a regra era a imprensa inspirar a confiança. Não é mais?

Era uma confiança cega ou quase incondicional que lembra em muito o personagem shakeasperiano Brutos, em Júlio César. Na tragédia, escrita em 1599, chama atenção Brutus, de integridade plena, republicano autêntico, ter participado do assassinato de César, de quem era amigo dileto, apenas por pressupor que aquele poderia vir a ser um tirano. E o que é igualmente grave, ele se envolveu na conspiração criminosa sem imaginar, sequer, que seus pares agiam por interesses particulares e sonhos de poder, não por zelo pela ideia republicana. Se o manto da ingenuidade envolveu Brutus, na rede de conspiração que se propunha a tecer a imagem de César como um tirano, qual tem sido o recurso da mídia para protagonizar a história brasileira, inclusive em momentos decisivos e manter sua credibilidade? Certamente, o mesmo da conspiração contra César. A promessa de paz e liberdade.

Vamos dar um passeio pela história. 1989, ano da proclamação da República.  A imprensa escrita ganhou força e credibilidade com as campanhas pela abolição da escravatura e proclamação da República. Seus porta-vozes seriam os embriões daquilo que, no futuro, viria se chamar de grande imprensa: Jornal do Commercio, O Paiz, a Gazeta de Notícias, o Diário de Notícias, a Revista Illustrada, O Brazil e A Tribuna. À época da proclamação da República, o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, fundado em 1827 – e que tivera entre os seus colaboradores o Barão de Mauá -, pontificava como o número 1 entre os jornais. Com seu estilo conservador, de perfil informativo, sempre atento à preservação da ordem pública, lido pelos homens de negócios, era monarquista, porém infenso a qualquer crítica, por superficial que fosse, à República.

Tanto que quando a República foi proclamada, escreveu: “Não nos é possível neste momento ser historiador, apreciando os fatos em suas causas próximas ou remotas e emitindo juízo sobre casos que, para justo e imparcial julgamento, exigem a calma da reflexão. Vamos expor simplesmente os acontecimentos de ontem...” (Jornal do Commercio, Rio de Janeiro,16/11/1889, p.1). Quer dizer, não tomou partido. Ficar no meio do caminho, significava, metaforicamente, a contrapartida monolítica ao romantismo de Brutos, sem se deixar iludir pela natureza do adversário (ou inimigo?): eram as relações entre capital e trabalho, não os conflitos entre os regimes. Não implicava coragem ou tibieza, sim a compreensão de que o regime era o que importava. Assim, todas as questões se resumiam aos homens que estavam no poder.

Eis o sentido do que seria a missão civilizadora da imprensa: virar as costas para o comunismo ou o anarquismo, pugnar pelo governo dos melhores. Independente dos conflitos que marcavam as relações entre capitalismo e comunismo, entre comunistas e o socialismo liberal de Proudhon e dos anarquistas, o que de fato importava no Brasil era, para o jornalismo empresarial, que a imprensa, em crescente expansão, fosse a mediadora entre o público leitor e a sociedade política. Foi o que aconteceu. Se Shakespeare compreendeu a não equivalência entre as palavras e as coisas, a imprensa brasileira, modelaria  a relação com a sociedade nessa ambivalência ou ilusão, na ambiguidade entre as palavras e o seu real significado.

O jornal O Estado de São Paulo, desde 1902, com Júlio de Mesquita, despontará como órgão político-ideológico. Não, não era uma visão ideológica vulgar. Além da evolução técnica, Júlio Mesquita transformou o antigo jornal “A Província de São Paulo” em um jornal de grande tiragem e de reportagens. Um marco na história do jornalismo: graças às reportagens de Euclides da Cunha, o jornal, que no início entendia a rebelião de Canudos como movimento monarquista, no interior da Bahia, acordou para a realidade. Em lugar de ser um rebelde, Antônio Conselheiro e seus aguerridos seguidores eram vítimas da nascente República. Pobre gente esquecida que perdeu o medo de morrer e se rebelou. O jornal não brigou com os fatos, pelo contrário. Fez jornalismo e não ficou à margem da história.

Estava desvendado o mistério: criticar as contradições, mas dentro do sistema. O sistema seria a magia do processo, mas igualmente o problema dado a intensidade das suas contradições. Não se trata de trilhar o caminho do mal, tal como Shakespeare fará em Macbeth. Foi a visão dominante que modelou um país visceralmente anticomunista, visceralmente anti qualquer questionamento da função da propriedade privada ou do sentido de uma República liberal. Ou mesmo da chamada questão social que Rui Barbosa, ele um jornalista, traria à cena com o movimento civilista. Essa seria a dificuldade de fundo da transição atual. Como manter uma mídia forjada no comunismo se o comunismo não é mais um fantasma e a sociedade tornou-se plural?

Um pouco mais de história. O “Jornal do Brasil” viria mais tarde à proclamação da República, em 1891, com a pretensão, logo abandonada, de que “o jornal não é político, nem faz política”. Chegou a tirar duas edições diárias na virada do século XIX, com tiragem de 50 mil exemplares, mas em 1916 seu apartidarismo se dissolvia com o protesto da “absorção ianque da Amazônia”, contrário à hipoteca da ferrovia Madeira- Mamoré. O seu parque gráfico era então, registra Nelson Werneck Sodré, “o maior da imprensa brasileira, compreendendo 12 linotipos, 3 monotipos, a maior e mais moderna máquina de impressão”.

Como o “Correio da Manhã”,  popular por excelência, e “O Estado de São Paulo”, que inovava com a conquista de assinantes junto a diferentes públicos, firmava-se como negócio. Os jornais de partido e individuais, como “aventura isolada”, estavam condenados a desaparecer nas grandes cidades. Acompanhavam o lento desenvolvimento das relações capitalistas no país, mas não se propunham a modernizá-las. Acomodavam-se às correntes políticas, às articulações de cúpula, às ideias individualistas, evitavam discutir as estruturas. Viviam, segundo Sodré, dos capitais comerciais e do Estado, correspondentes às “forças pré-capitalistas ainda dominantes no pais”. (Sodré, 1999, p. 278-9).

Era geralmente uma imprensa muito crítica, mas no âmbito do fato político. Não da filosofia política. Dividia-se em torno do movimento civilista, liderado em 1909 por Rui Barbosa, contra a candidatura de Hermes da Fonseca, mas via com crítica exacerbada debates em torno da propriedade privada, do valor do trabalho ou da organização popular.

Evoluíram os equipamentos, os anúncios, a qualidade gráfica, a qualidade editorial e as reportagens. Não evoluiu o tratamento da questão social. Nascia, assim, a República sem povo. Nascia mais. Nascia a informação como mercadoria. E a reputação como algo que se tornaria questionável. Agora, a pergunta que se materializa é: como transitar de um modelo em que o anticomunismo era o tema permanente para um modelo em que todas as correntes de pensamento se manifestam? Eis a questão, eis o dilema, eis que a realidade se tornou shakespeariana para a imprensa e a mídia em seu conjunto. É oportuno repetir Shakespeare : “Todo servo carrega em suas mãos poder para cancelar seu cativeiro”. Shakespeare, (Júlio César, I: 100).

Referências bibliográficas

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

MOLINA, Matias M.. História dos jornais no Brasil: Da era colonialà Regência( 1500-1840). São Paulo: Companhia das Letras, 2015, v. 1.

SHAKESPEARE, William. Júlio César. Tradução Barbara Heliodora. In: William Shakespeare: tragédias e comédias sombrias. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2009, v.1.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. Ed (atualizada). Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

*Francisco Viana é Doutor em Filosofia Política (PUC-SP), jornalista e consultor de comunicação.

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